A Infantilização do Pediatra
Antes de falar, escutei. Antes de escrever ouvi. Partilho com vocês. Pois somos um.
A sociedade a partir do século XIX construiu simbolicamente um mundo ideal no qual colocou a criança. Neste mundo não há dor, nem violência. A criança perdia então sua condição de adulto em miniatura e ganhava atenção especial. Neste mundo idílico, não havia trabalho infantil, nem exploração sexual, nem crianças que matavam. Não havia fome nem necessidade. Um mundo assim como num conto de fadas, com castelos e princesas, onde a bruxa seria sempre derrotada e a floresta perigosa desbaratada. Eram as crianças como anjos.
Para proteger nossas crianças, criamos um mundo assim, e lá as colocamos. Mesmo com a desconstrução desse mundo virtual a partir do olhar da psicanálise e da sociologia moderna, a partir do século XX, temos guardado seus ideais no nosso coração e temos saudades dele. O problema que gostaria de refletir é outro, embora ligado visceralmente, como siameses, a esse: além de colocarmos nossas crianças (filhos e pacientes) nesse mundo encantado, nos colocaram lá, também, como pediatras.
A idealização do(a) pediatra pela sociedade e por nós mesmos, enquanto sujeitos sociais, é daquele(a) indivíduo que está acima das necessidades de sobrevivência, aquele(a) que está sempre disponível, aquele(a) que é o(a) bonzinho da classe médica, que nada reclama, que a tudo suporta, que deve se contentar em ser sempre o último da equipe. Interessante que a sociedade em geral e a dos colegas médicos nos vêem como se fôssemos nossos clientes. É patognomônico, por exemplo, como os representantes da indústria farmacêutica nos tratam, desde a linguagem (quase sempre usando as formas diminutivas) até a questão de brindes, como pirulitos, balas, abaixadores de língua, balões... Nas festas da nossa especialidade, desde a decoração até os presentes, muitos são infantis, como num jardim de infância. Nas decisões em nível de grupos ou sociedades ou entidades médicas, os(a) pediatras são relegados a um último plano. Embora sejamos maioria.
Estranho mundo este que nos enredamos.
Nosso comportamento é também, muitas vezes infantil.
Dividimo-nos em pequenos grupos rivais, cada um querendo mostrar um melhor desempenho ou qualificação, como filhos mimados que querem atrair a atenção do pai, numa disputa entre irmãos. Não conseguimos nos unir até mesmo para lutarmos sobre coisas comuns a todos nós, como remuneração e condições de trabalho.
Para nós, basta um jantar em algum restaurante de luxo e alguns afagos públicos, tais como medalhas, placas e elogios. Dói ver e ouvir o discurso de alguns colegas de outras áreas ou mesmo estranhos à classe médica que estão na posição de “patrões” (notem que a raiz da palavra patrão é a mesma de pai), quando dizem estarem “sensibilizados com a pediatria, que se sentem emocionados com tudo que diz respeito à pediatria, que são o melhor grupo dentro de todo sistema, pois nunca causam problemas”, e assim por diante, lembrando aquele velho político que no dia dos professores chega às lágrimas ao lembrar com gratidão sua professorinha das primeiras letras. No entanto esse mesmo político nunca fez o menor gesto concreto para melhorar as condições de salário, de ensino, enfim da vida dos professores. Dói mais ainda ver os(a) colegas felizes, satisfeitos e conformados com seus bonequinhos de plástico na lapela da bata, agraciados com os elogios e sem questionar porque as suas reivindicações não são atendidas.
A tal ponto chega o nosso alheamento quando se trata de nós mesmos, que em serviços de excelência médica, tanto de ensino como de atendimento ao público, achamos normal um professor, com mestrado e doutorado e dedicação quase exclusiva, receber em torno de 2 mil reais, enquanto que, qualquer executivo em início de carreira sem ao menos um décimo da nossa responsabilidade, ganha em torno de dez mil reais. Que parâmetros são esses que usamos em nós mesmos? Nós estamos nos vendo em espelhos de crianças, como se crianças fôssemos.
Algumas atitudes que tomamos também que são típicas do mundo infantil, é quando, por exemplo, nos rebelamos por pagar impostos oficiais, sendo nossa primeira ação a de querer sair intempestivamente das nossas sociedades ou corporações ou das cooperativas, no entanto, quando alguma instituição camufla estes impostos e mais algumas outras taxas em desconto da nossa produção, aceitamos passivamente. Uma atitude positiva e adulta seria procurar nos inteirar mais profundamente do problema e em assembléia decidirmos o melhor caminho. Lembremos sempre, que somos maioria esmagadora e portanto decisória.
Repito, antes de falar escutei, antes de escrever li. Tudo isso acontece com todos nós em maior ou em menor grau. Somos um.
Há, no entanto, como crescer e nos desvencilhar desse mundo fictício e cruel, porque camufla a realidade e tolhe o crescimento e o desenvolvimento. Logo a nós, que somos mestres no crescimento e desenvolvimento do ser humano.
Reconhecer,Acolher, Organizar.
São os três caminhos básicos para caminharmos no amadurecimento.
O primeiro grande passo é reconhecer a situação; talvez o mais difícil, pois o olhar no espelho com espírito crítico, nos mostra muitas vezes o que não queremos ver. Desconstruir nossa imagem é um processo doloroso, embora que o reconstruir nos fortaleça de maneira gratificante. Não há ganho sem perda, especialmente no processo de crescimento. Assim como navegar é preciso, navegar em terra, que é caminhar, é preciso.
Creio que o reconhecimento da nossa situação, apesar de doloroso e difícil, não é tão complicado, pois é tão gritante, que diria como um dos profetas: “Se eu calar, essas pedras gritarão”.
O segundo passo, mais profundo e mais denso que o primeiro, é o acolher.
Fomos formados no sentido de sentirmo-nos como autônomos, senhores da vida e da morte, cuja palavra é a última. Ilhas de conhecimento e sabedoria. Como que filhos(a) únicos. Cada um de nós ou cada serviço a que pertencemos, ou mesmo grupo de trabalho ou pesquisa ou ensino, se sente como ilhas de excelência. Precisamos deixar de pensar como ilhas, segundo o texto que se segue:
Fôssemos ilhas mergulhadas no imenso oceano da vida, por mais belas e vivas que fôssemos, seríamos ilhas apenas. Em nossa porção de terra nascessem as mais raras flores de perfumes inigualáveis, e as beijassem as borboletas e os pássaros, seríamos ainda assim, pequenas ilhas.
Conseguíssemos galgar com o nosso trabalho, os mais altos postos, como nas montanhas dessa ilha, ou mesmo construir palácios e templos com nosso esforço individual, ou mesmo decifrar as letras de antigos documentos, ou penetrar no conhecimento de todas as matérias, com o nosso estudo solitário, mesmo assim seríamos como ilhas.
Existisse um meio de, isolando-nos do mundo, elevar nossa capacidade de trabalho a perto do infinito, ou mesmo nosso estudo nos tornasse cultos ao extremo, seríamos apenas ilhas, perdidas no imenso oceano, que é a vida.
Fôssemos poços ou lagos profundos onde habitasse quase toda espécie de vida, jamais seríamos fonte, jamais nos encantaria o mar. No entanto, unidos, seremos rios, correntes, cascatas, cachoeiras, continentes, seremos mar, veremos a Deus, porque, na verdade última das coisas do universo, todos dependem de todos.
Acolher cada pediatra como a um irmão ou irmã querida, que estava ausente e que agora retorna à casa. Precisamos nos acolher e nos cuidar um do outro.
Chegássemos nós a essa etapa da estrada, nosso percurso estaria quase findo. O horizonte estaria ali à nossa mão, como um fruto maduro à espera da colheita. Restaria apenas o organizar.
Organizar é ter o dom de se tornar um, na riqueza da pluralidade. Cada qual com seus milhares de dons e suas fraquezas, sua liberdade, sua voz, seu sentir, respeitados fraternalmente, buscando o bem comum. Aí então teríamos nos tornado adultos(a), sem perder a ternura das crianças.
Gostaria de terminar, se é que se termina algum dia, com a lembrança de uma parábola chinesa que li certa vez transcrita no livro de um amigo, Frei Carlos Mesters:
Levado o peregrino a conhecer o inferno, ele viu um enorme monte de arroz, cozido, branquinho, saboroso, e ao redor dele muitas pessoas famintas sentadas tentando comer com os palitinhos que os orientais usam para comer (hashi) e não conseguiam, pois eles eram muito compridos e ao tentarem levar o arroz à boca ele caía. Logo em seguida o mesmo peregrino foi levado ao paraíso.
No paraíso havia também o monte de arroz, com uma multidão sentada, se alimentando tranqüilamente, com os mesmos hashi. A diferença era que um levava a comida à boca do outro.
Assuero Gomes.