Peço
a quem não assistiu ainda ao mais novo filme de
Darren Aronofsky , ‘ Mother’ Mãe em cartaz nos
nossos cinemas, que não leia ainda essa
pequena crônica.
É o
tipo de filme que surge de década em década. Precisei assisti-lo duas vezes
para poder captar muitas das mensagens que são transmitidas visualmente e
verbalmente.
Extremamente
complexo, ele faz uma análise teológica e sociológica do ser humano em sua
relação com a natureza (à qual pertence) e com o divino.
Jennifer Lawrence faz o papel de ‘Mãe’. Javier Barden de ‘Ele’. Michelle
Pfeiffer de ‘Mulher’. Ed Haris de ‘Homem’ e Domhnall Gleeson de ‘Filho mais
velho’.
Inicia-se o filme
com a imagem de uma mulher toda queimada, dentro do fogo, numa região destruída
pelo fogo, numa casa em ruínas, pelo incêndio.
Em seguida aparece a mãos de um homem colocando um cristal róseo que
contém eletricidade dentro, numa espécie de pedestal, em forma de tripé, de
pequeno tamanho, então a partir daí a casa vai retomando sua forma e se
renovando e a propriedade ao redor se recompondo.
A cena seguinte é Jennifer despertando e procurando alguém a seu lado na
cama, que não está. Ela se levanta e sai andando pela casa (de 3 andares) até
abrir a porta da frente onde se descortina uma vista da propriedade (no campo)
verde, com relva e árvores, no meio do nada, isolada.
Ela cuida da casa enquanto Javier, ‘Ele’ é poeta e se mostra apaixonado
por ela, parece não se incomodar muito com a casa. Um relacionamento tranquilo
embora ele se sinta angustiado por não estar com inspiração para escrever seu
poema.
Repentinamente chega um visitante, Ed Haris o Homem, tossindo, bebendo,
e como um intruso, vai se instalando na casa. O poeta o recebe e o acolhe,
cuida dele, e ele vai desarrumando a casa, e fumando contra a vontade da ‘Mãe’.
Ela por sua vez fica indignada por que o Poeta acolhe o estranho e lhe dá guarida.
Toda casa ele tem acesso, apenas o terceiro andar, onde o Poeta usa com
uma espécie de escritório é vedado, pois lá está a pedra de cristal róseo e
ninguém deve tocá-la, mesmo assim o Homem tenta.
Há uma cena quando ele está vomitando pela embriaguez e doença, o dono
da casa está com ele para que vomite no sanitário, ela entra e vê uma cicatriz
no lado direito, que logo é encoberta pelo Poeta.
No dia seguinte entra a mulher do Homem, Michelle (magistralmente a
interpreta) veio também sem avisar e se acomoda na casa, passando a desafiar a
Mãe. Bebe, tem uma cupidez e sensualidade que perturba a Mãe e o ambiente,
insinua a dona da casa para ter relações com o Poeta e ter filhos.
O ambiente é de uma certa maneira hostil aos dois visitantes, bem como a
Mãe, enquanto o Poeta é mais acolhedor e compreensivo.
Aqui já dá para se fazer uma reflexão sobre o simbolismo do filme. O
Poeta é Deus, pois numa das cenas perto do final, a Mãe pergunta a ele, ’quem é
você? ‘ ele responde “Eu sou o que Sou”, isto em linguagem bíblica é Javé, o
nome de Deus.
A Mãe, a princípio pensei na figura de Maria ou Eva, mas não é. Ela me
parece ser a figura da Natureza, que propicia à Criação. Ela tenta ajeitar e
arrumar a casa (a Terra, o Universo), mas o Homem e a Mulher perturbam e
danificam a casa, no início desarrumando depois quebrando alguns objetos e
fumando e bebendo. É o início do Caos entrando no Paraíso.
Quando a Mãe se perturba, sente náuseas, fraqueza, desânimo e questiona
o Poeta (Deus) porque permite os intrusos e que eles baguncem a casa. Ele
apenas os acolhe e responde: “não têm para onde ir”. Quando ela se sente assim,
vai até o banheiro e prepara um medicamento, num frasco bem antigo, onde
dissolve um pó amarelo da cor de ouro, num pouco d’água, esse pó se torna como
uma energia dourada (a energia do Sol?) e ela se restaura.
A Mãe reboca as paredes e experimenta pigmentos na massa (como se
colocasse barro nas cinzas) e ela tem o dom de sentir a Casa pondo as mãos nas
paredes, percebendo como que a pulsação da casa, como um coração batendo,
inicialmente bem vivo e vermelho e aos poucos quando o caos vai se instalando,
vai ficando enegrecido, doente, isquêmico...
Repentinamente chegam os dois filhos do casal, também sem serem
convidados (ninguém é convidado, são sempre intrusos), a brigar por causa de
uma herança. O filho mais velho com o testamento na mão, briga com o pai e com
a mãe e parte para cima do irmão mais novo, questionando a preferência do pai
pelo mais novo e pela herança. Na briga o mais velho mata o mais novo com uma
pedra na cabeça (o Poeta tenta apartar e a Mãe-natureza fica apavorada). É sem
dúvida Caim e Abel, Adão e Eva (Michelle). O sangue do irmão mais novo mancha a
casa no chão, e a Mãe tenta a todo custo apagar aquela mancha indelével.
Saem todos para o hospital, o assassino foge.
A casa já está escancarada.
Enquanto ela está limpando o chão aparece o assassino com uma marca de
sangue na testa, igual a que está no chão.
A tensão do filme aumenta. Ele foge definitivamente e já chega à noite o
Poeta, Adão, Eva, chorando com roupa de enterro, outras pessoas para o velório,
Adão inconsolável, Eva olhares de raiva para a Mãe, sentam e pedem que o Poeta
diga palavras de consolo.
Ele diz que ‘está tirando as palavras de dentro deles, para se
consolarem’ o que acontece. A Mãe não entende nada as pessoas continuam chegando
e invadindo tudo. Deixam torneiras abertas, lixo espalhado no chão e nas mesas,
quebram encanamento (a questão do desperdício e da poluição). Quebram louça.
Quando Adão e Eva sobem no 3º.andar e quebram a pedra de cristal é a
única vez que o Poeta mostra ira. Expulsa-os daquele recinto, recolhe cada
pedaço e os espreme nas mãos que ficam sangrando. Quer ficar só.
Depois disso tranca a porta e a veda com tábuas. Observei também o
conceito ‘geográfico’ clássico ( Dante) de céu, purgatório e inferno. O ‘céu’
mais alto é o terceiro andar onde o Poeta tem o escritório, vai descendo para
os quartos, depois o térreo onde há a sala, cozinha, copa, terraço, no mesmo
nível do campo ao redor, e por último o porão onde fica uma espécie de túmulo
vedado (lembra o sepulcro) e um forno.
As próximas cenas mostram pessoas chegando, mais e mais, são como
conhecidos de Adão e Eva, comensais a princípio e depois vãos ‘destruindo’ a
casa aos poucos. Encanamento, reboco, louças. Há um foco no balcão que a todo
momento sentam em cima para conversar, namorar, etc... e a Mãe reclama que não
está pronto ainda, que vai cair (não entendi essa metáfora) o que acontece
perto do final. Invadem também o quarto do casal.
As pessoas veem para falar com o Poeta (há uma conotação de que ele é
vaidoso e se sente bem com o assédio). Todos vêm por causa da palavra e por ele
mesmo.
A Mãe já está extremamente angustiada. Tenta expulsar a todos o tempo todo.
O Poeta reclama que não consegue se inspirar para escrever um novo poema. Chega
uma pessoa que parece a editora com outros que parecem sacerdotes.
Subindo a escada no segundo andar (o dos quartos) Ele finalmente beija a
Mãe e uma luz intensa invade o rosto dela.
Já aparece ela dizendo a ele, pela manhã que está grávida. A casa se
ilumina. Ele se levanta da cama, nu, e parte para escrever. A inspiração voltou
com a notícia.
Ela procura ele depois e ele está na porta que dá para o campo, nu, com
uma espécie de pergaminho na mão. Mostra a ela o novo poema e ela chora de
emoção. Está lindo. Comenta.
Parece-me aqui que se trata do Evangelho.
Há uma cena quando ela entra e ele pergunta para onde ela vai. Ela
responde ‘vou escrever o apocalipse’.
A próxima cena mostra ela toda pronta, bem vestida preparando uma ceia
para os dois. Rapidamente dá para notar elementos da Pessach (Ceia Pascoal).
Uma multidão começa a chegar, fãs, jornalistas, pessoas como que com
lanternas (alusão às peregrinações e procissões religiosas). Ela reclama, chama
para a ceia mas ele atende a todos. “Eles estão vindo por causa da palavra”,
gostaram muito diz ele.
O clímax do filme vai se acentuando. Chega gente de toda parte. Pessoas
de roupa escura marcam a testa de outras dizendo ‘a palavra do poeta agora vai
ficar dentro de você para sempre’ e marcam a testa com uma marca escura (ritual
da quarta-feira de cinzas). Outras pregam o retrato do Poeta em uma parede
(lembra os ex-votos), e começam a retirar pedaços da casa para levar como
memória (relíquias). Entram mendigos, moradores de rua, migrantes e vão tomando
conta de tudo. Ela reclama e tenta expulsá-los mas eles dizem ‘o Poeta disse
que é para dividir com todos’ ‘tudo é de todos’. Ela se angustia. “Saiam da
minha casa, essa casa é minha” ao que um dos invasores responde com desdém ‘essa
casa é sua?’.
Na angustia a casa começa a sangrar justamente na mancha de sangue de
Abel e vai furando a madeira (cruz de Cristo?), e o sangue começa a pingar para
o porão e delineia o sepulcro. O forno do porão se acende sozinho.
Ela entra em trabalho de parto. A angustia aumenta. A casa já está toda
tomada. O Poeta no meio dos invasores procurando acalmar e consolar as pessoas
(parece alienado à situação da Mãe e do seu filho). Ela por sua vez toca na
parede da casa e o pulso da casa já está esmorecendo. O coração está mais
enegrecido. Isquêmico.
Há briga, tiros, confusão, pessoas fugindo de guerra, bombas, policiais
agredindo, refugiados, pessoas presas, um caos. O Caos instalado na Casa.
Ela em trabalho de parto avançado gemendo e gritando de dor e pavor. Ele
aparece e timidamente tenta ajudar ela e levar a um lugar onde possa dar a luz
em segurança (lembra o princípio do Apocalipse). No meio do caos aparece uma
médica, negra, que recorda um pouco uma policial ou bombeira ou ainda uma
médica Sem Fronteira, que tenta ajudá-la, mas leva um tiro de fuzil bem na
cabeça.
Finalmente ele a leva para o quarto e fica com ela até ela dar à luz o
seu filho. Lá fora todos querem invadir o quarto. Ela implora para que ele não
deixe. Está extenuada. Senta no chão. Quando o menino nasce o ruído lá fora
silencia. O Poeta vai abrir a porta, ela apavorada pede que não. Ele diz que
querem apenas deixar alguns presentes para ela e o menino. Ela não quer
aceitar, mas trazem roupas limpas e comida (um cesto com frutas). Lembra as
ofertas dos Reis Magos.
Ele pede então o menino. Ela nega. Ele puxa uma poltrona e fica em
frente a ela, que está no chão. É uma posição majestática em relação a ela,
porém não a força. Espera. Até passado algum tempo, ela extenuada dorme. Quando
abre os olhos o filho está com o Poeta no meio da multidão, que ovaciona (aqui
a cena mais forte, o clímax do filme) o menino e ele o entrega para a multidão.
Quando a Mãe vê grita e vai ao encontro gritando, desesperada, irada, ”meu
filho, me deem meu filho” Por que você fez isso? Ele diz ‘Eles querem apenas
vê-lo’ então começam em silêncio a comer um pedaço de carne sanguinolenta. Ela
sai atrás do filho, mas encontra sobre uma espécie de altar os restos de uma
criança que foi devorada (aqui não precisa explicação).
Ela grita e esmurra o chão, que se fende. As pessoas batem nela
enfurecidas, chamando-a de vadia, prostituta, etc.. Rachaduras em toda a
estrutura. O Poeta grita com ela “não faça isso” e com os outros para não
baterem nela (uma atitude um pouco passiva) Ela desce as escadas e vai ao
porão. A essa altura o sepulcro já tinha se aberto e o fogo da pequena fornalha
aceso.
No sepulcro há um tonel cheio de óleo. Ela fura e espalha por toda a
casa e arredores. O povo quer mata-la. O Poeta grita para ela não tocar fogo.
Ela incendeia toda a casa e os campos. Tudo. Referência ao Apocalipse.
Ao final com tudo e todos destruídos pelo incêndio, ela ainda respira.
Ele a pega nos braços e pergunta a ele; “Quem realmente você é?” Ele responde “Eu
sou o que Sou” (esse é o nome de Deus, Javé. ‘Você ainda me ama?’ Ela responde “Você sabe que eu lhe
amo. Eu já lhe dei tudo, que você ainda há de querer?” “Você sabe que ainda
falta uma coisa” Ela concorda e fecha os olhos. Ela está calcinada.
Ele enfia as duas mãos no tórax dela, retira o coração e dentro do
coração a pedra rósea com energia dentro. Então a coloca no pequeno tripé do
início do filme e a casa e os campos vão retomando a vida. (Um Deus que está
sempre criando).O filme acaba com a mesma cena inicial uma jovem na cama
perguntando por Ele.
Assuero Gomes