Pandora e a
festa dos desesperados
Assuero Gomes
Médico e Escritor
Eu, Assuero, isolado na ilha do planalto, tive uma
visão, que a princípio me perturbou muito, mas um vento suave, como uma brisa,
me soprou um alento e disse que não me perturbasse o coração, pois tudo haveria
de passar.
Uma mulher, bela, sedutora, voluptuosa, de grandes
seios fartos, de onde escorria mel e do outro, leite, sentada numa magnífica
caixa, trabalhada em filigranas de ouro sobre marfim e ébano.
No centro de uma praça uma multidão acorria à mulher.
Queriam beber do leite e do mel de graça. Eram centenas de centenas. Gente de
todo tipo. Mendigos, aleijados, míopes, caolhos, prostitutas, dançarinos,
glutões, beberrões, palhaços, fugitivos, empresários, endividados, domésticos,
donas de casa, adolescentes, estudantes, domadores circenses, mambembes,
doentes, peregrinos, incautos, descuidistas, banqueiros, funcionários públicos,
padioleiros, amantes, e muita gente mais.
Como ondas, avançavam para a mulher, que lasciva,
vestida de escarlate e lábios carmim, acenava para a multidão indócil e aflita,
atrás de leite e mel de graça.
Aumentando o frenesi a mulher abria a caixa e de lá
tirava notas graúdas de dinheiro e aspergia sobre a população, dissolvendo o
pouco de povo que existia e fomentando a massa. Deliravam todos numa orgia
sufocante. Da caixa a mulher passou a retirar e espalhar palavras, muitas
palavras. Palavras de discórdia e disputa. Mentiras e calúnias. Molhava as
palavras em um pouco de leite e mel para torná-las mais palatáveis, mais
saborosas, outras vezes as colava nas cédulas.
Era uma caixa sem fundo. Quanto mais ela tirava as
palavras de lá, mais surgiam. Sem fim.
A multidão
começou a se olhar de maneira estranha. Pai desconfiando de filho, amigos de
longos anos se estranharam, namorados se agrediram, os mais ricos e os mais
pobres se engalfinhando no chão, negros contra índios e mulatos contra brancos.
O ódio foi se alimentando do próprio ódio. Lutas e ferimentos sangravam e
molhavam o chão. Impassível a mulher exibia um sorriso discreto. Como um
carnaval às avessas, as pessoas já desfiguradas na sua agonia, aflitas não
sabiam para onde ir, presas dentro da própria praça. Alguns tentavam recolocar
as palavras na caixa mas era impossível pois já tinham sido espalhadas e seu
efeito devastador se fazia presente de forma irreversível.
Pedi então ao
vento que me acordasse dessa visão tenebrosa. Pedi ao Vento...
Depois da festa dos
desesperados...
Ao final da festa de Pandora, onde a mesma havia distribuído
leite e mel de graça, junto com algumas cédulas de dinheiro, e espalhado
palavras de discórdia sobre a multidão dos desesperados, que freneticamente se
atracou entre si, restou o caos.
Irmãos contra irmãos, pais contra filhos, negros contra
mestiços, brancos contra índios, sulistas contra nordestinos, homossexuais
contra héteros, jovens contra idosos, ricos contra pobres, católicos contra
evangélicos, todos contra todos e contra si, numa diabólica cisão fratricida, um
pentecostes ao inverso, um reino de Babel.
Restaram os sobreviventes. Estrupiados, rotos, um trapo de
nação em frangalhos. Mais pobres que antes, sujeitos às esmolas prisioneiras. Almas
e corpos machucados. Ali na praça que virou uma arena, ao centro, Pandora ria
despudorada, sentada sobre sua caixa, agora vazia.
Do outro lado da praça, numa campina, uma senhora observa
serena, com olhos de mãe. Veste-se de maneira digna e singela. Não fala, não
gesticula, não se agita. Comovida, espera pelos primeiros feridos. Os famintos,
os iludidos, os doídos, que agora chegam. As chagas sociais expostas, as
promessas vãs, não cumpridas, as decepções que pesam na cruz de uma vida
difícil. Esses são os desesperados.
A senhora observa as marcas de sangue no caminho. Acolhe um
a um. Seus gestos agora são calmos, fraternos, maternais. Escuta e cuida.
Alivia e consola. Nada promete apenas trabalha, o trabalho dos inocentes que
têm as mãos limpas e podem tocar nas chagas dos pobres.
O tempo serena. O balburdio da festa aos poucos vai se
tornando silêncio. Uma sinfonia de alvorecer vai surgindo. O vento retorna seu
sopro de vida e alivia.
Logo alguns vão chegando e ajudando. Estão sofridos também,
mas resistiram e agora ajudam. A harmonia perdida vai se reincorporando ao ambiente, os
suspiros, os gemidos de dor são diluídos na alegria de servir e na esperança. A
massa disforme pelo sofrimento vai aos poucos se formando em povo.
A senhora então começa a falar palavras de alimento, de
medicamento, de trabalho digno, de escola, de carinho, de respeito, de união,
de partilha, de fraternidade, de compromisso, de ajuda, e asperge aqueles
desesperados com uma imensa chuva de misericórdia. É como uma chuva que desce
do céu, do coração de Deus.
Ali, misturado aos que ajudam, seu filho se mantém
incógnito, como se fosse um, um com os outros, um em todos. O desespero vai
dando lugar à esperança. Um novo tecido vai se refazendo, como um tecido novo
que apaga os remendos e se refaz sob a linha de sutura do serviço e da justiça.
Como um manto inconsútil. Um manto que abriga e agasalha os despossuídos, um
manto com que se faz a bandeira de uma nação. Um manto no qual se abriga os
filhos, um manto no qual se cobre a tenda da humanidade e se come o pão. O pão
da partilha.
Ao final nada restou da festa de Pandora, nem uma tênue
lembrança, nem uma saudade sequer.
Reconstruir na fraternidade sob o manto da misericórdia, recolher
o disperso, cuidar de um povo, esse é o serviço da Senhora e de seu filho muito
amado. Rogai por nós, do Brasil.
Assuero Gomes
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