SEMANA DOM HELDER CAMARA
DOM HELDER
E A ESPIRITUALIDADE
DO CONFLITO
Fortaleza, 29 de setembro de
2009
DOM HELDER E A ESPIRITUALIDADE DO CONFLITO
Irmãs
e Irmãos,
Paz e Alegria para todos Vocês!
O
Grupo nos
convida para refletirmos juntos
sobre “Dom
Helder e a espiritualidade do conflito”.
Jesus
veio para que todos
tenham vida, vida
boa e abundante. Todos
nós sabemos que
o querido e grande
Cearense Helder Pessoa
Camara aqui em
Fortaleza, no Rio
de Janeiro, em
Olinda e Recife, no Nordeste,
no Brasil, na América Latina e no Mundo gastou sua
longa existência
de 90 anos para
servir à vida,
ajudando a vida a desabrochar,
dando chances à vida,
zelando pela vida,
protegendo, defendendo e promovendo a vida.
Ele se entristecia profundamente
quando a vida
– tanto nas Sociedades
como nas Igrejas
– era machucada,
ferida, pisada,
explorada, marginalizada, escravizada. Em
conseqüência de sua
dedicação e atuação
em favor do Reino (que é vida), ele foi amado e admirado dentro
e fora do Brasil e, também,
odiado e perseguido tanto nesta Terra como dentro de nossa
Igreja. Ouçamos o nosso
Profeta: “A mão
de Deus está conosco.
Sofrimento é normal na vida humana.
Perseguição é normalíssima na vida
cristã.” (1)
Estamos
celebrando o primeiro centenário
de seu nascimento (1909 – 7 de fevereiro – 2009) e por
toda parte
surgem acontecimentos que o homenageiam. Promovendo a Semana
Dom Helder Camara, O Grupo deseja colaborar para manter
viva sua
memória e acesa
a chama de seus
ideais. Há homenagens
que correm o risco
de abafar essa memória,
de enfraquecer esses
ideais, essa herança.
Há pouco houve, no Recife,
a Jornada Teológica
Dom Helder Camara, organizada pela 12ª vez pelo Grupo Igreja Nova. Na
ocasião o Movimento
de Mulheres Contra
o Desemprego alertou: “’Ai de vós quando todos
falarem bem a vosso
respeito, pois
foi assim que
trataram os falsos profetas’
(Lc 6,26). Como todo
profeta verdadeiro,
a exemplo de Jesus, Dom
Helder foi um ‘sinal
de contradição, motivação para
uns e escândalo para
outros’ (Cf. Lc 2,33). Sua voz corajosa e coerente
confortava e, ao mesmo tempo, incomodava, dividia mentes
e corações, sempre
em nome
do Evangelho. Estamos celebrando o centenário de seu
nascimento e corremos o risco de transformar essas celebrações
em uma demonstração
de falsa unidade.
Pessoas que
o perseguiam ou lhe
negavam apoio nas horas
difíceis, agora o aplaudem de público. Por trás disso esconde-se a sutil
tentativa de camuflar a memória ‘perigosa’ do profeta,
servindo-se da sua morte
para esvaziar a sua profecia.
Vivemos atualmente, na Igreja e no Mundo,
um tempo
sem profetas
e profetismo.” (2)
Por ocasião da Eucaristia no Recife,
no dia de seus
100 anos, 7 de fevereiro
próximo passado,
ouvimos uma boa mensagem que recordava a luta
do Dom por
uma Sociedade mais
justa e humana,
mais “respirável” como
ele mesmo
gostava de dizer. Mas,
o pregador se esqueceu de lembrar que ele igualmente
lutou e sofreu muito por uma Igreja mais pobre e
servidora.
Sem dúvida, O Grupo não sonha com uma Semana Dom
Helder Camara que coloca este Cearense no
altar, mas
deseja que
este evento
abra espaço para
que sua
vida seja inspiração
para muitos.
Dom Helder, com toda sua mansidão, foi um
lutador que
se bateu para, tanto
na Igreja como
na Sociedade, transformar
o mal em
bem, o egoísmo
em fraternidade,
a ganância em
partilha, a injustiça em paz. Ele
abraçava o Pobre de todas as pobrezas e
apontava as causas dos sofrimentos. Dom Helder era
uma pessoa em
quem contemplação
e ação tiveram todas as chances.
Ele vivia as duas em
grande equilíbrio
e profunda ligação.
Muito se fala
e se escreve sobre seu
agir. Graças
a Deus! As pessoas
que viveram bem
perto dele, são
unânimes em
atestar que tudo o que
fazia, nascia de reflexão e era sustentado por
oração. O Dom
não rezava a missa,
não presidia a celebração;
ele vivia a eucaristia
intensamente e esta perdurava o dia todo. Palavras dele em
1959, quando estava com
50 anos: “Eu
nasci para celebrar a Santa Missa.” E
em 14 de março
de 1964, dia em
que foi anunciada sua
nomeação de Arcebispo de Olinda e Recife, escreve ele
de Roma para seu
grupo amigo
no Rio de Janeiro:
“Deus me
faz a graça de estender
o dia inteiro
a Santa Missa:
ofertório de 24 horas,
consagração perene,
comunhão com
tudo e com
todos” (3). Em uma
de suas meditações
lemos: “Quando não
estou na santa missa,
me preparo para este ponto alto de meu dia ou vivo em ação de graças porque o
ponto alto já passou”. Quando
se reflete sobre este
Profeta, não
se pode esquecer o costume
que ele
adquiriu como jovem
padre, e manteve até
alguns anos
antes de sua
Grande Viagem,
como ele
gostava de chamar sua
morte. Cada madrugada, estando em
sua casa
em Fortaleza,
no Rio de Janeiro,
no Recife ou
em qualquer
lugar do Mundo,
ele passava algumas horas
em vigília:
reflexão e oração,
pensar e escrever. Tempo que ele usava, conforme
suas próprias palavras,
para recompor e abastecer a sua unidade, dispersa
e gasta em
seu agir na véspera, para, com garra, poder enfrentar a lida de um novo dia. Helder Camara
era um
homem livre.
Vivia, como nós,
dentro das estruturas
da Sociedade e da Igreja,
porém, parecia que
as mesmas para ele
não existiam, embora
ele tenha sofrido um
bocado por
causa de mau funcionamento delas. Mas,
elas não
o derrubavam. Ele não
tinha medo
delas. Dom Jacques Gaillot, bispo de Partênia, diz: “Quando
a gente tem medo
não é livre,
e quando é livre
provoca medo”. Sempre
tive a impressão que
Dom Helder procurava e descobria o cerne das realidades,
deixando de lado o supérfluo.
Ganhava, assim, muito
tempo e muita
energia para
se dedicar ao que
realmente importava. Parecia que dificuldades
não desanimavam o Dom,
mas – antes
– o convidavam a se jogar na luta
para vencê-las. Dom
Helder era um
homem cheio
de compreensão. Escutava os sofrimentos
e as dificuldades de suas irmãs e de seus
irmãos mais
com o coração
que com
os ouvidos. E, para
confortá-los abria, também, mais o coração que a boca. O Dom era
misericordioso. É do conhecimento de todos que ele sofreu bastante
por parte
dos poderosos do Mundo
e da Igreja. Muitíssimas vezes ele falou
forte contra
muitas formas do mal,
mas inutilmente se procurará em seus numerosos escritos
palavras duras contra
as pessoas que
causavam o mal. A elas,
o Dom soube perdoar.
Alguns fatos.
Fato nº 1
“Dom Helder e a espiritualidade do conflito
dentro de nossa
casa de fé,
a Igreja”.
No
dia 11 de maio
de 1970, Dom Eugênio Sales, então arcebispo de Salvador da
Bahia, escreve a seguinte carta.
“Meu caro Dom Helder, em minha última viagem à Roma, semanas
atrás, tive uma audiência com o Santo Padre. Em certo momento ele
perguntou por você
e pediu-me que lhe
transmitisse o seguinte: ter
mais calma;
não sair muito da diocese.
Manifestou, expressamente, apreço pelo seu trabalho no Rio. Tenho diante dos
olhos a nota
que fiz quando
retornei à casa, para
não me
esquecer. Pareceu-me claro
e evidente que
ele deseja
de você moderação. E aprecia mais
o Dom Helder do Rio
do que o de Recife.
Falei-lhe de sua devoção
e obediência, sem
limite, ao Papa.
Ele me
respondeu que bem
o sabia e revelou uma estima bem
grande por
você. Parecia também
consciente de nossa
amizade. Meu
querido amigo,
sei que lhe
custa saber o
que está dito
no início. Recebi expressamente
uma tarefa de alguém
a quem nós
dois servimos com
devoção.” (4)
Vejamos
o que aconteceu exatos
15 dias depois,
na França. Dom Helder tinha uma palestra
marcada para o dia
26 de maio em
Paris, prevista para
ocorrer num auditório
com capacidade
para 2.500 pessoas,
mas uma hora
depois de iniciada
a venda dos ingressos,
na manhã do dia
25, os organizadores mudaram-na para o Palácio dos Esportes, onde
caberiam aproximadamente 10.000 pessoas.
“A responsabilidade da França diante da Revolução”
era o título
da palestra que
preparara. Mas na casa
do cardeal François Marty, arcebispo de Paris, um
grupo de 25 pessoas,
várias autoridades eclesiásticas e
leigas, cobraram-lhe uma palestra com outro conteúdo, que
falasse “a verdade sobre
o Brasil daquele momento” e denunciasse
as torturas que
“sabiam existir” no Brasil. Ele
teve de deixar de lado
a conferência que
preparara, e falar de improviso
no Palácio dos Esportes,
naquela noite com
sua capacidade
de lotação superesgotada: alem das 10.000 pessoas que
completam essa capacidade, outras 10.000
– segundo todos
os jornais e revistas
de Paris, na ocasião – ficaram do lado de fora.
As fotografias testemunham a superlotação. Segurando em
uma das mãos uma rosa
vermelha que
recebera de presente na entrada,
Dom Helder introduziu o tema de sua palestra, explicou o título
– “Quaisquer que sejam as
consequências”, que prenunciava sua intenção polêmica e passou a contar dois exemplos concretos e comprovados de pessoas
torturadas: o do estudante Luis Medeiros
de Oliveira e o do frade
dominicano cearense Tito de Alencar. Assim que
terminou, o cardeal Marty, que o ouvira da primeira
fila, correu para
cumprimentá-lo, já prevendo as
consequências da palestra: “Pastor da cabeça aos pés. Pastor na explicação e nas respostas.
Aconteça o que acontecer,
estará sofrendo como Pastor.
Direi isso ao Santo
Padre”. (5)
Na
noite de 11 para
12 de outubro do mesmo
ano de 1970, o Dom
escreve, numa carta a Dom Eugênio Sales,
a seguinte alínea:
“O que me
parece fora de dúvida,
tangível, é o mistério
de esmagamento, na véspera de viagens que me parecem expressivas e de grande
responsabilidade. Os homens se movem e Deus
os conduz. É tão clara
a Mão da Providência
purificando a peregrinação da paz de qualquer
oculto perigo
de vaidade e orgulho!!...
viajo, humilhado, vencido interiormente.
Como entendo o brado
de Cristo: ‘Meu
Pai, meu
Pai, por
que me
abandonaste!?...’” (6)
Fato nº 2
“Dom Helder e a espiritualidade do conflito
dentro da nossa
casa da humanidade,
o Mundo”
Em abril de 1963 dom Helder recebera uma visita
do embaixador dos Estados
Unidos da América Lincoln Gordon, durante
a qual fizera críticas
à Aliança
para o Progresso,
do presidente Kennedy. O embaixador perguntou se Dom
Helder repetiria as críticas em TV norte-americana.
O Dom fez a gravação
que foi transmitida no programa “Costa
à Costa”, em
horário de grande
audiência. No Brasil ela
não foi ao ar.
Porém, apareceu na imprensa
o artigo “Atenção,
Arcebispo”, de Augusto
Frederico Schmidt que provocou a “queda” de sua popularidade no Brasil com
o início da campanha
contra Dom
Helder, chamando-o de subversivo e comunista. Este
acontecimento foi um
“divisor de águas”.
(7)
Em nosso momento histórico
há uma forte tendência
de “nivelar”, de “esconder”
conflitos tanto
na Igreja como
na Sociedade. Reina
uma espiritualidade intimista,
devocional e alienante que não beneficia a vida,
totalmente contrária
a de Dom Helder que
era uma espiritualidade
de “combater o bom
combate”, o da vida,
o da justiça, o da paz.
Atualmente é fácil
constatar duas atitudes
possíveis diante
das injustiças e dos sofrimentos no Mundo e na Igreja.
Ou finge-se que
os males não
existem, ou cobrem-se os sofrimentos com um manto de falsa caridade, que
gera indiferença, passividade
e hipocrisia. Ambos
os modos de agir
são mais
fáceis que abrir
o coração e a mente
para ações
corajosas que visem acabar
com essas chagas.
Jesus
botava gente fora
do Templo, chamou pessoas
de hipócritas, de túmulos
caiados, de raposas, de guias cegos, de
geração má e adúltera.
Pregou em outras a etiqueta
“raça de víboras”.
Conhecemos o seu “Ai de vós!” (8). O Jesus de Nazaré dos Evangelhos
tem um outro
rosto que
o dos “doces santinhos” da Itália, e é, seguramente, menos
“bonzinho” do que Ele,
muitas vezes, é apresentado em show-celebrações.
O
Dom também
era um
showman, mas, pisando com os dois pés no chão da realidade nua e crua da vida
neste mundo, e agindo corajosamente, procurando não
somente aliviar dores agudas, mas
igualmente se doando para
arrancar os males
pela raiz.
Procurava remediar dores
e combater causas.
Batalhava contra os males
pessoais e contra
os coletivos.
Apesar de por
toda a parte
existirem grupos como
O Grupo e acontecerem sinais de esperança,
parece-me que a caminhada
atual não
é de progresso, antes
de retrocesso.
Entre as palavras que o Dom não gostava de proferir,
havia o verbo “mandar”.
Lembro um colega
amigo que
lhe disse certa
vez: “Dom,
fiz o que me
mandou fazer”. “Meu
filho, eu
mandei? Me perdoe”, ouviu ele como resposta.
Nasci
em janeiro
de 1939, à porta da segunda
guerra mundial. Como
criança vi em
minha terra natal, a Holanda, vida
ser destruída pelo inimigo sob o slogan “Befehl ist Befehl” – ordens
são ordens.
Setenta anos após
o início daquela guerra
e 45 anos depois
do Concílio Vaticano
II que proclamou a grandeza
do Povo de Deus,
ouve-se, no Mundo e na Igreja, quase que sempre, ainda o mesmo mandamento em lugar do convite ao amor.
Nada mais fácil do que ficar parando em aplausos meio vazios. Para os que desejam realmente
homenagear o nosso
Profeta, apresento duas sugestões dele mesmo:
§ “Temos que viver e fazer
viver o Evangelho
e as lições fundamentais
de Cristo”.
§ “Não basta
esforçar-nos para levar o
Brasil a conhecer mais,
ter mais, produzir mais; ele precisa, com urgência, é
de ser mais”.
Penso que são tarefas
boas e bonitas que fazem as comemorações
do centenário fluir conforme os sonhos
do próprio homenageado.
Que Dom Helder
continue sendo forte inspiração
para batalhar em favor da vida para O Grupo e para todos nós que atendemos a seu
convite e que
nos reunimos hoje
nesta bela cidade
de Fortaleza que,
há um século,
presenteou a Humanidade com o grande dom do Grande Dom.
Muito obrigado!
João
Pubben
Referências:
(1)
Nelson Piletti e Walter Praxedes. Entre o poder e a profecia. Página
378.
(2)
Movimento das Mulheres Contra
o Desemprego. Mensagem do dia
25 de agosto de 2009, no Recife.
(3)
Luiz Carlos Luz
Marques e Roberto de Araújo Faria. Dom Helder
Camara – Circulares Conciliares.
Volume I Tomo
I. Página 430.
(4)
Carta de Dom Eugênio Sales
para Dom
Helder Camara, de 11 de maio de 1970.
(5)
Nelson Piletti e Walter Praxedes. Dom Helder Camara – O Profeta da Paz. Páginas
317 a 319.
(6)
Carta de Dom Helder Camara para Dom Eugênio Sales,
de 11/12 de outubro de 1970.
(7)
Carlo Tursi. Não pensem que eu vim para trazer paz
à terra. . . ! (Mt 10,34), em
Boletim Semanal
“ANOTE”, setembro de 2009.