Igreja das Fronteiras
Celebrar com arte:
qual é mesmo questão?...
Reginaldo Veloso
I
– A arte da vida e a arte do louvor
<< Cantai
ao Senhor Deus um canto novo, e o seu louvor na assembléia dos fiéis (Sl
149,1).
Somos convidados a cantar um canto novo ao Senhor. O homem novo conhece o canto
novo. O canto é uma manifestação de alegria e, se examinarmos bem, é uma
expressão de amor. Quem, portanto, aprendeu a amar a vida nova, aprendeu também
a cantar o canto novo. É, pois, pelo canto novo que devemos reconhecer o que é
a vida nova. Tudo isso pertence ao mesmo Reino: o homem novo, o canto novo, a
nova aliança.
(... ...)
Ó irmãos, ó filhos, ó novos rebentos da Igreja católica, o geração santa e
celestial, que renascestes em Cristo para uma vida nova! Ouvi-me, ou melhor,
ouvi através do meu convite: Cantai ao Senhor Deus um canto novo. Já
estou cantando, respondes, cantas bem, estou escutando. Mas oxalá a tua vida
não dê testemunho contra tuas palavras.
Cantai com a voz, cantai com o coração,
cantai com os lábios, cantai com a vida: Cantai ao Senhor Deus um canto
novo. Que louvores? Seu louvor na assembléia dos fiéis. O louvor de
quem canta é o próprio cantor.
Quereis cantar louvores a Deus? Sede
vós mesmos o canto que ides cantar. Vós sereis o seu maior louvor, se viverdes
santamente. >> AGOSTINHO, Bispo
de Hipona, sec. V, sermo 34, in LH II, p.642s.
“Celebrar
com arte” me remete, antes de tudo, a celebrar “como” arte... E toda arte
autêntica brota do existencial. Não por nada me ocorreu imediatamente, ao
receber o convite para este encontro, a admoestação de Agostinho, primeiro
teólogo do canto litúrgico, que acabamos de ler.
Em
seguida, indo um pouco mais atrás, encontro-me no “caminho” do Samaritano (Lc
10,25-37). Se dele me esquivar, não poderei entender o que seja o louvor
autêntico, não chegarei à fonte mesma de onde brota a arte de bem louvar. Parece
que, de cara, Jesus, o único Mestre, nos alerta e vacina contra toda
verticalidade que suba para o alto sem ter passado pela horizontalidade do
cotidiano, especialmente, pelo caminho dos assaltados e despossuídos de toda
sorte... contra todo artifício que não procede do existencial... contra todo
“faz de conta”.
Infelizmente,
desde a catequese da 1ª Eucaristia, passando pela nossa formação litúrgica nos
seminários e outras casas ou oportunidades de formação, que, em geral, parece
se queimar esta etapa primeira e fundamental. Quantas páginas os manuais de
Liturgia dedicam a esta questão primeira e essencial?... Até liturgistas
renomados passam por esta questão sem perceber o seu verdadeiro alcance.
Da
Assembleia litúrgica, celebrante principal, aos que a ela servem, animando o
canto, proclamando as leituras, presidindo-a ou exercendo qualquer outro
ministério, se falta essa vivência de base que é uma vida vivida na
solidariedade, em que o “fazei isto em minha memória” (1 Co 11,24-25)
coincide com o mandato do “lava-pés” (Jo 13,4-17; cf. 1Co 11,17-22), e a
celebração do Memorial se consubstancia da prática efetiva do serviço humilde
aos irmãos e irmãs, se falta isso, insisto, tudo mais soa falso e a arte de
celebrar é apenas um artifício, que pode contentar a quem gosta de enganar-se,
mas, com certeza, não engana a Deus. É disso que se trata, quando alguém,
profeticamente, denunciou a religião como “ópio do povo”. Infelizmente, em
todos os setores da vida em sociedade, parece se dar bem quem consegue exercer
bem a “arte de enganar”. E é significativo que este nosso encontro aconteça às
vésperas de mais uma Copa do Mundo e de mais uma Eleição.
A
pastoral litúrgica que culmina no “celebrar com arte”, pelo visto, supõe, antes
de tudo e impreterivelmente, uma pastoral de evangelização, onde todos e todas,
a começar pelos evangelizadores e evangelizadoras, aprendem, no cotidiano,
compartilhado nas rodas de revisão de vida, na dinâmica do “ver – julgar –
agir”, a arte das artes, e capricham nela, a arte do “Bem Viver”, o jeito
“samaritano” de caminhar pela vida, a prática cada vez mais exigente e
abrangente da solidariedade em cada ambiente de vida, priorizando os que mais
precisam, saindo de suas “zonas de conforto” para ir às “fronteiras
existenciais”, como nos incita Papa Francisco, abraçando, na medida na própria
consciência, as grandes causas da humanidade, saindo às ruas e correndo riscos,
se preciso.
Todo
cristão consciente precisa caminhar com esta clareza e percepção de que, o
primeiro ato de adoração consiste em compadecer-se e debruçar-se sobre todos
aqueles e aquelas que jazem pela estrada, a ponto de morrer, fisicamente,
moralmente, espiritualmente, e são legiões. Sem isso, nossa arte de celebrar
será, no mínimo, demagogia, e o Mestre, muito antes de Marx, a denunciará como
a mais perversa expressão de “hipocrisia” (Mt 7,15-23; cf. Mt 23,13-36; Jo
10,7-15 e 1Co 13,1).
A
esta altura de nossa reflexão, vale a pena deixar repercutir o evangelho de
domingo passado, 5º Domingo do Tempo Comum (melhor se chamaria “Tempo do
Discipulado e da Missão”), desfecho luminoso das Bem-Aventuranças: “Vós sois o
sal da terra. Ora, se o sal perde o seu sabor, com que se salgará? Não servirá
para mais nada, senão para ser jogado fora e pisado pelas pessoas. Vós sois a
luz do mundo. (...) Assim também brilhe a vossa luz diante das pessoas, para
que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos céus” (Mt 1
5,13-16). É a lógica mesma do “viver” como fonte primeira do “louvar”.
Preocupados
com o “celebrar com arte”, com a arte de celebrar, não por mera coincidência,
mas, providencialmente, às vésperas de mais uma Quaresma, perguntemo-nos:
1.
Nossa
pastoral litúrgica se faz com devida clareza e exigência sobre esse
pressuposto: liturgia, antes de ser uma prática ritual, antes de ser
celebração, é uma prática existencial, é a vida cotidiana, pessoal e
comunitária, vivida segundo os valores do Reino de Deus anunciado por
Jesus?...
2.
Onde
começa a arte de celebrar?...
3.
O que
precisamos exigir, antes de tudo, de nós mesmos e de toda pessoa que assume um
ministério na celebração, sobretudo de quem preside, para que nossas
celebrações sejam uma autêntica obra de arte?...
4.
Que pensar da
celebração eucarística, culminância da vida eclesial, reduzida à banalidade de
celebrações feitas a qualquer momento, de qualquer jeito e a qualquer pretexto,
aparentemente, sem qualquer vínculo comunitário entre as pessoas que celebram,
e sem qualquer compromisso pessoal e comunitário com Bem Comum?...