O professor cego
que ensinava música aos surdos
Havia dormido por quarenta anos. Despertou do seu sono
profundo, pensando na guerra fria, na maravilha da Ilha, nos barbudos, em mudar
o mundo, em escovar os dentes, em pentear a barba e assanhar os cabelos
compridos. Em conhecer a China no porão de um navio. Em viajar de motocicleta
com mochila nas costas.
Incomodado com a primeira claridade depois de tanto tempo no
reino de Morfeu, saiu perambulando pelas ruas, procurando um ônibus elétrico.
Nas ruas caóticas de tanto carro e ônibus aproveitou para pregar contra o
capitalismo e a Coca Cola.
Desnorteado no seu perambuleio e quase cego da luz afiada
nas retinas, se escondia a cada esquina quando via um guarda de trânsito.
Procurava a penumbra. Lembrou que estava na hora de voltar ao trabalho, ensinar
música na escola pública. Lutar pelos direitos dos pobres. Acabar com o
consumismo. Destruir lojas e bancos. Não conhecia shoping centers. Jogar
bolas de gude nos cavalos da polícia.
Onde ficava sua escola municipal? Estava tonto e quase sem
enxergar. Precisava ir lá organizar uma greve. Antes passaria no sindicato. E
saiu assim tateando e perguntando. Não viu nenhum ônibus elétrico, nem notou a
ausência dos fios. Nem sua camiseta quase rota. Nem a calça jeans desbotada
muito curta já. Nem os chinelões de couro puídos. E foi trafegando por praças e
lembranças mal dormidas, e sonhos e pesadelos, ruas desviadas, buracos,
calçadas descalças, sirenes e gritos e choros e pedidos esmoleres.
É preciso organizar a resistência, a passeata, o comício,
distribuir os panfletos. Esconder os esconderijos, delatar os camaradas e
companheiros que traíram a causa. Chegar à escola o quanto antes, estava
atrasado mais uma vez. Os alunos esperando. O diretor maldito, reacionário. O salário
miserável. O ônibus que não passa. O calor infernal. O barulho. As buzinas. As
descargas. Os bueiros transbordando. O odor fétido. E a escola que não chega.
Atrasar-se trinta minutos é grave. Quarenta anos já é
imperceptível. Ufa! Finalmente. A escola está no mesmo lugar. Escola Brasil. As
tintas desbotadas, as grades enferrujadas. E esses olhos que não estão
enxergando quase nada. Antes da aula, concentrar com os professores. Derrubar o
diretor. O mundo está todo errado. Maldita propaganda capitalista. Todo mundo
quer uma calça Lee e um Karmann Ghia. Um cigarro importado Marlboro.
Estranho a escola está vazia. As salas de aula viraram
quartos. Brancos quartos. Na sala do diretor as mesas brancas e as cadeiras
brancas presas no chão. Não estava enxergando mais nada. Uma voz perguntou, ao
fundo, “é o novo professor?” Sim. “Siga-me. As crianças estão esperando há
muito tempo. Se atrasar assim, mais de quinze minutos de tolerância, estará
despedido”.
Apontou as crianças. Não viu. “Qual o assunto de hoje? Pode
falar alto, são surdas!” Onde está o violão? “O pessoal do psiquiátrico
que funcionava aqui, quebrou”.
Assuero Gomes
Médico e escritor
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