Tecendo a vida
Observo minha filha Clara descobrindo o mundo da costura. Imagino a vida como um tecido que vamos criando através de infinitos fios. Todos estão entrelaçados, tão juntos, tão dependentes uns dos outros, que feridos pelas agulhas ou lacerados pelas tesouras se recompõem. As suturas são cicatrizes. Os remendos que fazemos na nossa vida, sejam por conta de amores puídos, ou por traumas psicológicos não resolvidos ou ainda por causa da saúde rompida, vão deixando marcas.
Ah! quantas vidas, quantos tecidos. Pergunto a ela sobre a vida. Ela mostra-me uma colcha de retalhos. A dela é composta por alegres estampas e bordada com fios coloridos. Nós apertados nos laços familiares. Pontos e chilreados, linhas retas e zigzags, tecidos de várias texturas, suaves cetins, rendas delicadas.
Penso na vida de tantas e tantas pessoas que passaram pela minha vida. Como estarão suas vestes, que roupas estarão usando? Acaso o pano negro da mortalha já estará tecido com o alinhavo da dor, ou apenas os claros e leves panos das roupas infantis, costurados em seguida às cambraias do vestido de noiva com a casimira inglesa do paletó do noivo, entrecortados com a fina seda da camisola do dia?
O fio da vida, em alguns pontos esgarçado noutros seguro, em outros em alto relevo ou ainda correndo por debaixo da pele da fazenda, faz ligações e mais ligações, infinitas com fios do passado e do futuro, de tal maneira que se poderia caminhar por toda a existência humana mostrando que ninguém existe sozinho e que a delicada teia da vida é tecida com as existências articuladas e interdependentes de cada ser vivo.
O que agora não sabemos sobre o mistério da vida, pois observamos como quem olha um bordado pelo avesso, será revelado (retirado o véu, que é de pano), então saberemos finalmente da beleza plena e misteriosa da vida contida no universo e compreenderemos o significado oculto de tantos e tantos acontecimentos inexplicáveis.
A lã que agasalha e que falta ao pobre, a fita da festa que enfeita os dias de trabalho duro sem recompensa digna, a estola do sacerdote que presta serviço, o jaleco do médico que ameniza a dor, como se apresentam? Como vestirá a professora o seu hábito de dedicação? Em quais mãos de qual costureira hábil se tornarão vida? Que vestes usaremos no nosso último dia, primeiro da eternidade?
Eu pergunto a mim mesmo, quem teceu o manto da aurora ou a capa negra da noite bordada de estrelas e luz? Como descobrir um país inteiro com o lençol da vergonha e vesti-lo com as vestes da justiça e da paz?
A linha continua costurando, seguindo a agulha incólume que penetra o tecido e tenta dar um sentido aos milhares de nuances e segredos escondidos no pedaço de pano, num pedaço de vida, entrelaçada a tantas vidas.
Assuero Gomes
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