Excelente texto extraído do blog de Daniel Duclos, brasileiro que atualmente mora na
Holanda. De uma lucidez impressionante.
A sociedade holandesa tem dois pilares muito claros: liberdade de
expressão e igualdade. Claro, quando a teoria entra em prática, vários
problemas acontecem, e há censura, e há desigualdade, em alguma medida, mas
esses ideais servem como norte na bússola social holandesa.
Um porteiro aqui na Holanda não se acha inferior a um gerente. Um
instalador de cortinas tem tanto valor quanto um professor doutor. Todos
trabalham, levam suas vidas, e uma profissão é tão digna quanto outra. Fora do
expediente, nada impede de sentarem-se todos no mesmo bar e tomarem suas
Heinekens juntos. Ninguém olha pra baixo e ninguém olha por cima. A profissão
não define o valor da pessoa – trabalho honesto e duro é trabalho honesto e
duro, seja cavando fossas na rua, seja digitando numa planilha em um escritório
com ar condicionado. Um precisa do outro e todos dependem de todos. Claro que
profissões mais especializadas pagam mais. A questão não é essa. A questão é
“você ganhar mais porque tem uma profissão especializada não te torna melhor
que ninguém”.
Profissões especializadas pagam mais, mas não muito mais.
Igualdade social significa menor distância social: todos se encontram no meio.
Não há muito baixo, mas também não há muito alto. Um lixeiro não ganha muito
menos do que um analista de sistemas. O salário mínimo é de 1300 euros/mês. Um
bom salário de profissão especializada, é uns 3500, 4000 euros/mês. E ganhar
mais do que alguém não torna o alguém teu subalterno: o porteiro não toma
ordens de você só porque você é gerente de RH. Aliás, ordens são muito mal
vistas. Chegar dando ordens abreviará seu comando. Todos ali estão em um time,
do qual você faz parte tanto quanto os outros (mesmo que seu trabalho dentro do
time seja de tomar decisões).
Esses conceitos são basicamente inversos aos conceitos da
sociedade brasileira, fundada na profunda desigualdade. Entre brasileiros que
aqui vêm para trabalhar e morar é comum – há exceções - estranharem serem
olhados no nível dos olhos por todos – chefe não te olha de cima, o garçom não
te olha de baixo. Quando dão ordens ou ignoram socialmente quem tem profissão
menos especializadas do que a sua, ficam confusos ao encontrar de volta
hostilidade em vez de subserviência. Ficam ainda mais confusos quando o chefe
não dá ordens – o que fazer, agora?
Os salários pagos para profissão especializada no Brasil conseguem
tranquilamente contratar ao menos uma faxineira diarista, quando não uma
empregada full time. Os salários pagos à mesma profissão aqui não são
suficientes pra esse luxo, e é preciso limpar o banheiro sem ajuda – e mesmo
que pague (bem mais do que pagaria no Brasil a) um ajudante, ele não ficará o
dia todo a te seguir limpando cada poerinha sua, servindo cafézinho. Eles vêm,
dão uma ajeitada e vão-se a cuidar de suas vidas fora do trabalho, tanto quanto
você. De repente, a ficha do que realmente significa igualdade cai: todos se
encontram no meio, e pra quem estava no Brasil na parte de cima,
encontrar-se no meio quer dizer descer de um pedestal que julgavam direito
inquestionável (seja porque “estudaram mais” ou “meu pai trabalhou duro e saiu
do nada” ou qualquer outra justificativa pra desigualdade).
Porém, a igualdade social holandesa tem um outro efeito que é
muito atraente pra quem vem da sociedade profundamente desigual do Brasil: a
relativa segurança. É inquestionável que a sociedade holandesa é menos violenta
do que a brasileira. Claro que aqui há violência – pessoas são assassinadas, há
roubos. Estou fazendo uma comparação, e menos violenta não quer dizer “não
violenta”.
O curioso é que aqueles brasileiros que queixam-se amargamente de
limpar o próprio banheiro, elogiam incansavelmente a possibilidade de andar à
noite sem medo pelas ruas, sem enxergar a relação entre as duas coisas.
Violência social não é fruto de pobreza. Violência social é fruto de
desigualdade social. A sociedade holandesa é relativamente pacífica não porque
é rica, não porque é “primeiro mundo”, não porque os holandeses tenham alguma superioridade
moral, cultural ou genética sobre os brasileiros, mas porque a sociedade deles
tem pouca desigualdade. Há uma relação direta entre a classe média holandesa
limpar seu próprio banheiro e poder abrir um Mac Book de 1400 euros no ônibus
sem medo.
Eu, pessoalmente, acho excelente os dois efeitos. Primeiro porque
acredito firmemente que a profissão de alguém não têm qualquer relação com o
valor pessoal. O fato de ter “estudado mais”, ter doutorado, ou gerenciar uma
equipe não te torna pessoalmente melhor que ninguém, sinto muito. Não enxergo a
superioridade moral de um trabalho honesto sobre outro, não importa qual seja.
Por trabalho honesto não quero dizer “dentro da lei” - não considero honesto
matar, roubar, espalhar veneno, explorar ingenuidade alheia, espalhar ódio e
mentira, não me importa se seja legalizado ou não. O quanto você estudou pode
te dar direito a um salário maior – mas não te torna superior a quem não tenha
estudado (por opção, ou por falta dela). Quem seu paí é ou foi não quer dizer
nada sobre quem você é. E nada, meu amigo, nada te dá o direito de ser cuzão.
Um doutor que é arrogante e desonesto tem menos valor do que qualquer garçom
que trata direito as pessoas e não trapaceia ninguém. Profissão não tem relação
com valor pessoal.
Não gosto mais do que qualquer um de limpar banheiro. Ninguém
gosta – nem as faxineiras no Brasil, obviamente. Também não gosto de ir ao
médico fazer exames. Mas é parte da vida, e um preço que pago pela saúde.
Limpar o banheiro é um preço a pagar pela saúde social. E um preço que acho
bastante barato, na verdade.
obs.: imagens do Google