detalhe do vitral da Catedral da Sé de Lisboa
A Páscoa dos Homens e das Mulheres
Pessach, atravessar sobre, transpor, passagem, mudança de um estado de morte para a vida. Vida plena. Passagem do estado de oprimido para liberdade. Da fome para a plenitude. Saciar-se com os bens da Terra, saúde, fartura, bênção, prenuncio da realidade na dimensão escatológica. Da tristeza para a felicidade sem fim.
Da morte para a ressurreição. Do sarcófago para o berço. Saber, com certeza, que a última palavra é a palavra da vida, é a palavra de Deus, é a Palavra. Tudo isso é Páscoa !
Para os cristãos não há como dissociar a ressurreição da cruz. Uma dá sentido à outra. Tentados somos a só querer experimentar a ressurreição, como se a páscoa fosse uma ligação de uma mesma coisa, de vida com vida, assim não seria páscoa, seria a realidade última para onde tudo e todos convergem, mas não seria a páscoa.
Celebrássemos nós somente a ressurreição sem o referencial da cruz, cairíamos na festa dos sentidos, até mesmo do intelecto, mas apenas isso. Em outra direção, celebrássemos apenas a cruz, sem a dimensão da ressurreição, cairíamos desta vez, no puro ativismo e acabaríamos construindo muros e mais muros, que acabariam por nos aprisionar e nos sufocar.
Muitos ficaram chocados com as cenas cirúrgicas do filme de Mel Gibson. Há, porém, nele o mérito de ter trazido à nossa lembrança o fato de que Jesus foi aprisionado, torturado e morto como preso político, muito perigoso por sinal, uma vez que desestabilizava o sistema do mundo, quando propunha uma conversão (metanoia) dos homens e das mulheres. Não vi também nenhuma conotação anti-semita neste filme, pois na verdade quem condena Jesus não são os judeus, nem os romanos, é o sistema que domina o mundo, independente de qual grupo esteja naquele momento exercendo o poder. Quem condena Jesus é o egoísmo dos homens e das mulheres quando exercem toda e qualquer forma de dominação sobre o pobre, o excluído, o marginalizado. Lembremos, contudo, a contrapartida da vida, não é a morte que tem a última palavra: a cena tranqüila da saída do túmulo. A luz do dia penetrando na escuridão da terra, a face serena do Vivo, mesmo trazendo nas mãos e no coração as cicatrizes dos sofrimentos. É a passagem (pessach) plena.
Algumas pessoas conseguem realizar a páscoa quase plenamente ainda nesta vida, são aqueles que se dedicam ao essencial: transformar a realidade de morte em sinais de vida para seus semelhantes. É Helder Camara, é Gandhi, Antonio Conselheiro, Martin Luther King, Margarida Alves, Tereza de Calcutá e tantos e tantos outros, homens e mulheres que conseguem ser caminho e iluminar o caminho dos outros.
É tempo pascal.
Façamos nós a nossa páscoa. Cuidando da vida, dos pobres, da Terra. Cuidando dos outros. Fermentando um novo tempo onde não haja mais necessitados, nem choro nem lágrimas. Mudar o mundo se começa mudando dentro de nós, na nossa família, no nosso dia a dia, em pequenas coisas, que vão se juntando numa corrente de solidariedade e de repente já não é mais noite.
Uma feliz e contínua páscoa para todos, especialmente para os amigos Joezil, Lívio e Analíria.
Assuero Gomes
Pediatra, assuerogomes@terra.com.br
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