Em junho de 2009 publiquei alguns artigos sobre o caos de violência que era Recife. Hoje vejo que nada mudou, até piorou.....
A cidade de Lynch sangra
Cortada de rios, vejo Recife com
suas artérias e veias abertas, sangrando. Já não são os Flamboyants nem as
tardes que tingem de vermelho nossos olhos, apenas o sangue de pessoas,
derramado nos bueiros entupidos.
A cidade sangra o sangue da
violência, da juventude estuprada nos seus anseios e sonhos. Pesadelos emanados
do crack e da maconha, vidas sem valor nenhum, nem as deles nem as dos nossos
filhos.
Nos out-doors e nos out-bus
mulheres louras seminuas cobram o consumo de pares de tênis, na televisão os
jogadores de futebol mostram seus dentes e seus carros de luxo, nos jornais as
páginas pingam sangue.
Os jovens da periferia olham para
trás e não vêem família, olham para frente e nada vêem, olham o agora e sentem
o gosto metálico de uma bala entre os dentes. Crêem no deus imediato do crédito
adquirido com o revolver, sonham com o carro do boy da faculdade particular.
Pais e mães aflitos oram todas as
noites para que os filhos e as filhas retornem. Insones vasculham as janelas do
apartamento ou o som das ruas noturnas na ansiedade do retorno. A cidade trama,
a cidade mata.
O olhar cartesiano dos gestores
mecanicamente esconde os corpos e pensa em aumentar o efetivo policial.
Alardeiam um por cento a menos de mortes que há dez anos, três por cento de
menos sangue que no carnaval anterior, quatro balas a menos que no último
natal.
A cidade sangra aflita. A droga
permeia no seu rastro maldito. Os ricos enviam seus filhos para o Canadá ou
para a Europa, os remediados sonham com isso, e veem que a única solução
plausível é a porta derradeira do aeroporto internacional Gilberto Freire/Guararapes.
O abismo que há entre o menor e o
maior salário ganho entre os brasileiros é bem mais profundo do que possa
imaginar nossa voraz e insaciável máquina de arrecadação de impostos. O abismo
nos sugará a todos, com ou sem CPF, aliás, já está sugando a cada dia, a cada
noite; é um abismo terrível, no qual vamos depositando nossos jovens, nossa
esperança, nossa civilidade.
A cidade sangra pelos olhos, suas
lágrimas vermelhas, sangra pelos ouvidos com os gritos lancinantes de mães
solitárias, sangra pelos poros de cada janela aberta nas noites dos
apartamentos.
Quantos corpos teremos que
contar, insepultos em nossas mentes e corações? Não há relógios nem cronômetros,
nem mãos cansadas de coveiros que consiga parar esta dança de número malditos.
A cidade do Recife sangra,
Pernambuco e Brasil sangram mergulhados na impunidade, e afogam o futuro
perdido de tantos jovens, todos vítimas precoces, imoladas no altar do descaso
e do egoísmo de uma nação, mãe que não dar educação nem saúde a seus filhos, no
entanto engorda políticos.
Sonhar, no entanto é preciso,
assim como é impreciso determinar um tempo de futuro melhor, para os
sobreviventes. Pelo próprio ofício do cristão, devemos esperar contra toda
desesperança e criar pequenas fraternidades nos caminhos alternativos.
Assuero Gomes
Médico e Escritor
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