Precipício
Escultura de Salvador Dalí, em Barcelona
Quando fores fazer um precipício é importante lembrares de
alguns detalhes. Presta bem atenção pois podes por tudo a perder e ao final teu
precipício ser tão pequeno que nem teu pé caberia dentro dele.
Lembra de que deves começar a cavar aos poucos, retirando
pequenas porções de terra de cada vez, remover pedras e colocá-las ao teu redor
para que ninguém te perturbe. Criar um precipício é um trabalho que requer
muita paciência e isolamento. Não se consegue um precipício sem esforço
solitário, dedicação e abnegação. Dia e noite, quer chova ou faça sol, ignora
as pessoas ao teu redor, pois elas certamente atrapalhariam teu desiderato.
Quanto mais isolado de tudo e de todos, mais chance terás de atingir teu
objetivo.
É bom também tapares teus ouvidos hermeticamente para que
não escutes e se puderes põe uma viseira lateral nos teus olhos para que não
vejas ao teu redor. Pensar é o ato mais solitário do ser humano,no entanto é o
que o torna diferente do existir dos outros seres. Pensar é um ato absoluto,
solitário e paradoxalmente o ato de maior liberdade a que se pode chegar nessa
vida.
Cavar um precipício é um ato solitário, porém não
libertário, pois ele aprisiona a quem o pratica ao próprio precipício.
Quando cavares o precipício lembra-te do abismo. Nem todo
precipício se torna um abismo, mas todo abismo já é por si só um precipício.
Cuida para cavar continuamente e cada vez mais profundo. Escolhe com cuidado um
terreno seco e pedregoso, de preferência com pedras pontiagudas. Fica atento
para que não surja água no teu labor, pois a água estraga um precipício, uma
vez que faz flutuar e quem sabe, se for muita, transbordar. A água é luz. Cava
teu precipicio no escuro, tão escuro quanto possas, de tal forma que não vejas
nem deixes ninguém ver. Um precipício digno desse nome há de ser profundo,
pedregoso, árido, escuro, íngreme, e largo, muito largo. O precipício ideal
torna-se um abismo, onde tu irás e levarás àqueles que por acaso ainda estejam
ao teu derredor. Um precipício é fiel ao dono, pois lho segue aonde for,
sempre.
Para se cavar um grande precipício há de se cavar com as
próprias mãos, com o sangue misturando à areia o próprio suor das noites
acordadas no escuro de sua existência. Quando teus dedos já não forem mais como
dedos, teus olhos já suarem lágrimas, teus sonhos sepultados ali na argamassa
da terra revolvida e não houver mais esperança, quando tudo isso estiver posto
no antibanquete da mesa do precipício, para um pouco. Para porque ele está
quase pronto. Há um ponto em quem constrói precipícios, nessa engenharia
maldita, que não há mais retorno. Um ponto crucial.
Acaso ao terminares a tua labuta e vendo teu trabalho
concluído, e sentires medo do que tu mesmo cavaste, procura alguém que pode
estar perto de ti, suave e silencioso como uma aranha. Pode acontecer que te
ofereça um fio, um pequeno fio como de seda. Aceita pois, pode ser tua única
maneira de ultrapassar teu precipício.
Assuero Gomes
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