Sonhos inquilinos
Assuero Gomes
Há sonhos que invadem nossas moradas sem os
permitirmos. Há os que alugam nossa alma e ainda os que se hospedam de
mansinho, de graça, sem aluguel algum. Senhorio de sonhos alheios somos, sonhos
que vagam a ermo em aldeias e vielas, em sobrados mal-assombrados ou em
planícies mágicas.
Dizem que os sonhos são guardiães do sono, outros
são encantados e nos despertam da monotonia pálida de cada dia. Sonhos como
fados vadios vagando pelas ruas lisboetas do Bairro Alto, ou como óperas toscas
de cidades de ruínas romanas esvaziadas. Sonhos pagãos há que acordam os sonos
cristãos. Sonhos de casarios passados e suas janelas fechadas, Dalinianos,
delirantes como num filme de Fellini.
Nossa habitação noturna às vezes é invadida por
sonhos acolhedores, que permitiríamos habitar para sempre, mas que partem com
os primeiros movimentos da aurora. Sonhos de sonhar juntos, de construir
realidades utópicas, sonhos de construir uma nação, às vezes são amordaçados
por pesadelos hereges.
Quanto tempo duro o sonho e amacio o coração? Os
sonhos são inquilinos indesejados na maioria das moradias, pois penetram no
recôndito aposento de descanso, à penumbra da noite, e sem pedir licença vão
tomando conta das lembranças e embaralhando os sentimentos das recordações.
Fazem do coração de um homem um quarto bagunçado de um adolescente, e depois
vão embora, deixando para trás quase nada, apenas desarrumadas mobílias e
gavetas remexidas.
Casas vazias são convites sigilosos, como anúncios
imobiliários ocultos para pretendentes que vagueiam sem abrigo.
Sonhos fúnebres não respeitam a alegria de
nascimentos nem a idade do proprietário. Nesse modo de locação não há como se
administrar, nem como se cobrar rendas nem declarar ganhos financeiros, apenas
esperar antes que o sono chegue, que os novos inquilinos de cada noite, sejam
amistosos e deixem alguma lembrança boa, como um souvenir da passagem da rápida
temporada.
A estadia de sonhos passageiros que chegam de trem
como numa estação desabitada, são efêmeras como a estrela primeira da tarde.
Sonhos há que também chegam expressos e radiantes e logo, logo, partem e de tão
rápidos e fugazes nem os notamos mais ao acordar. Há sonhos tão impertinentes
que derrubam as portas e penetram nas fechaduras das mentes insones, assombram
mesmo em hospedeiros acordados, como fantasmas desencarnados.
Alguns sonhos chegam de navio, de barco a remo ou numa
nau espanhola; em transatlânticos de luxo ou botes salva-vidas; aportam no
nosso sono e desembarcam sem licença, sem visto ou permissão, como se nosso
abajur os houvesse atraído, qual farol na noite escura.
Há quem se iluda, que sua casa está vazia, vazia
de sonhos, guardada pelo sono profundo; tolo engano, não há casa vazia que não
caiba um sonho, nem que seja um simples poema esquecido na infância ou um olhar
fugidio de uma namorada primeira que jamais soube, e agora acorda no meio da
noite para encantar alguns segundos.
O que seria da realidade se não fossem os sonhos?
Apenas cidades fantasmas inabitadas, secas e poeirentas, impossíveis de viver.
Resta-nos abrir as portas e as janelas e deixar os inquilinos entrarem.
Excelente texto. Assim como diversos outros que já tive oportunidade de ler, aqui no seu blog.
ResponderExcluirAceite os meus sinceros parabéns !
Philippe