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segunda-feira, 26 de maio de 2014

O parto no circo






O parto no circo


Era uma bela trapezista daquele circo chamado Circo Brazil. Mambembe, ia de cidade em cidade, lugarejo em lugarejo, por toda parte desse imenso país, declinando sol a sol, o circo. Um belo dia apareceu grávida, não se sabia se era do anão palhaço de calças rotas ou de algum motoqueiro transeunte de algum posto de gasolina nas estradas.


Uma menina sonhadora que queria dar o nome ao filho de Macunaíma, pois assistira ao filme e vira Grande Otelo vestido de bebê. Achou aquilo muito engraçado e olhando para o anão lembrou logo dele, por isso o resto da trupe apostava que o filho era dele.




Sonhadora, e como o circo não parava em lugar nenhum, passou os nove meses imaginando um parto ao ar livre, em plena mata ou mesmo na área descoberta de lona, ou à luz das estrelas ou ao por do sol. O dono do circo, que tinha obrigação de prestar assistência médica aos seus artistas fez-se de desentendido e manteve o sonho da trapezista alimentado pela mulher barbuda e pelo domador de leões (que não existia mais), românticos, aconselhadores de que um parto natural entre as árvores e os bichos era o melhor para ela e para seu filho, Macunaimazinho. Nada de hospitais, maternidades ou médicos, gravidez não era doença e parto era uma coisa natural, como mel de abelhas e limões.


O Circo Brazil estava tão decadente que a lona tinha mais perfurações que urupemba gasta. Os artistas e funcionários estavam tão analfabetos que olhavam os papeis higiênicos e tentavam ler. As crianças barrigudas de vermes. As atrações circenses de animais foram sendo comidas pouco a pouco. A proteção da rede sob o trapézio estava por um fio. O dono do circo desviava os parcos recursos para seu próprio bolso. Foi quando ele teve uma ideia ‘brilhante’: fazer o parto da trapezista em pleno espetáculo.


Como estava perto do tempo, o circo levantou a lona, afastado um pouco do vilarejo, que por sinal não tinha médico, nem enfermeiro nem mesmo um simples posto de saúde. A mulher barbuda iria fazer o parto, pois tinha experiência de muitos anos. Havia de ser em uma piscina para ser bem natural. Com não havia piscina, trouxeram o tanque de plástico onde o elefante, quando havia, bebia água. Colocaram-na bem no centro, cheia d’água. O anão, o domador, o bilheteiro, o músico, um gato que eles criavam e um papagaio.


O apresentador gritava para a plateia de quase vinte pessoas “hoje tem espetáculo?” e alguns assoviavam e batiam palmas, “nasce”, “nasce”...e a trapezista se contorcia na banheira do elefante e gemia cada vez mais alto, a plateia ia ao delírio, “força que vai!” “força!!!” o anão por sua vez e a mulher barbuda jogando um pouco daquela água já escurecida nas costas e na cabeça da trapezista, e Macunaimazinho não nascia.

O público foi se cansando, a molecada começou a pedir o dinheiro de volta enquanto soltava assovios e gracejos indecorosos para a trapezista. A água escurecia enquanto a barbuda tentava limpar com um balde. 

O dono do circo de impaciente estava ficando furioso. O circo esvaziado, a trapezista cansada naquela piscina de água suja, os ‘parteiros’ não sabiam o que fazer.

Pela madrugada nasceu finalmente Macunaimazinho, com a cabeça um pouco deformada, largado, sem muita reação. Não se soube mais dele pois o circo seguiu caminho de fracasso em fracasso, com seus artistas cada vez mais pobres e o dono se safando como podia. E assim o Circo Brazil continua parindo seus filhos entre agonias e espetáculos...

Assuero Gomes






domingo, 25 de maio de 2014

Um pouco de coisas boas, também...




Um pouco de coisas boas, também...



























Esplendorosa muralha da Babilônia que perpetua o brilho de milênio na beleza dos ladrilhos

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Amor em tempo de cólera





Amor em tempo de cólera
Definitivamente a barbárie tomou conta do nosso país. O mais novo episódio se deu com o assassinato brutal do médico Arthur Eugênio, quando saía do hospital após mais um dia de trabalho.
Quando atiraram nele, não atiraram apenas num médico altamente qualificado e profissional dedicado, pai de família e cidadão de um país sem cidadania. Quando atiraram nele, mataram a nação e sua parca condição de civilidade. Sangra a vida, que de tão aviltada, já não se dar o devido valor. Quando um médico que luta, apesar das ínfimas condições de trabalho, para salvar vidas e minorar sofrimentos, é assassinado dessa maneira, se tripudia sobre o futuro que não virá para milhares de brasileiros.
Estamos em tempo de cólera. Pessoas são arrastadas, linchadas, mutiladas, sequestradas, invadidas. Um país geme. O governo banaliza a vida de seus cidadãos, saúde pública, segurança, mobilidade, moradia, educação já se tornaram jargões na boca dos políticos, sem mais nenhum efeito. Vive-se a cólera em cada esquina, a ira e o desencanto.

Que a morte de Arthur não fique apenas na lembrança doída de seus familiares e amigos e de seus clientes, mas que inflame a indignação de um povo, e da revolta resulte ações concretas de justiça e de mais respeito à vida.

Assuero Gomes
Médico

domingo, 18 de maio de 2014

Recife, A Cidade de Lynch revisitada




Recife, 15 de maio de 2014




Publiquei esse texto em 2008. Em 2014 as coisas não mudaram, em alguns aspectos até pioraram.

A Cidade de Lynch revisitada

Apesar de ter intenção de jamais voltar à cidade de Lynch, por estas circunstâncias do destino que fogem à nossa vontade, encontrei-me nela no 1º. de maio deste ano.
A saudade verteu em meu coração um pouco de nostalgia.
Dia do trabalhador, e não do trabalho, esperava eu, talvez inconscientemente, uma festa entre comícios e manifestações, crianças nas praças e ruas com suas famílias operárias; mas a manhã estava fria e sonolenta, de um cinzento pesado, quase morto.
Deparei-me de repente com uma visão desesperada e silenciosa, que gritava na sua imagem mais que mil gritos: como corpos cobertos em sacos de lixo, plantados na areia da praia, assim como se o mar os houvesse vomitado, mas o mar não aceitava estes corpos, pois náufragos foram de uma cidade violenta e nada tinham a ver com o mar, belo mar de uma orla que fora lúdica e gentil em tempos passados.
Não era pesadelo. Mais de mil e quinhentos mortos em quatro meses de ano. Mais que qualquer guerra no planeta. Corpos jazem neste tecido social roto que amortalha a cidade.
Contradição de sentimentos cívicos, como cidadãos do medo que se tornaram, nesta Gotham City sombria, sem heróis, inquiri-os sobre seus sentimentos. Medo. Mais medo. Insegurança. Aprovam quando a polícia mata sem julgamento, porém na sua contradição, a maioria não confia nesta polícia.
Na melhor tradição do capitão Willian Lynch passaram a matar, eles mesmos, os assaltantes, com o beneplácito e a cumplicidade da população. Estranha cidade a qual esta se transformou. Nãomais quase ninguém à noite, a brisa do mar que o poeta cantava e seus lampiões, não há. Mosquitos infectados rondam a miséria. Pululam crianças nos semáforos exibindo a degradação social, enquanto nas publicações e cartazes se alardeia a melhoria de vida da população.
Quem foste e o que és agora, oh triste cidade? Far-te-ia um poema com 30 copos de chope, mas nãochope, apenas copos vazios de lágrimas; domar-te-ia o rio, cão sem plumas, mas ele está morrendo e não há o que domar, apenas limpar o canto da boca como num último suspiro.
Violência, que nasce da injustiça e que clama com lâminas e revólveres, entre fumaças e seringas, destruíste uma bela cidade. Embrutecida a população não ouve serestas nem se dá conta de versos e rimas, mesmo as preciosas.
Ruas vazias de cidadãos vazios de esperança, como os sacos de lixo espalhados pela areia da praia. Cidadãos encarcerados nas suas ilhas de ferro farpado e eletrificado, oprimidos por impostos pesados, que se isolam e se isolam e se isolam...
A periferia que dormita, quase inerte, a catar restos de latinhas de alumínio e a vender suas drogas aos mais abastados, sangra uma cidade que carece de esperança. Sangra-lhe a garganta com cacos de vidro, em cada moto, um sobressalto, em cada saída o regresso duvidoso.
Melhor guardar de ti uma foto, um postal, onde mesmo imóvel possamos projetar nosso desejo de te ver bela, algo como uma mirada narcísea, onde se a si próprio no olhar da amada. Melhor guardar de ti o doce fruto da juventude, com o qual alimentavas o futuro.
Que fizeram de ti, bela cidade?

Assuero Gomes



sexta-feira, 16 de maio de 2014

A cidade de Lynch ( de 2006 até aqui)








A cidade de Lynch


Tornou-se uma cidade sombria. Outrora palco de grandes acontecimentos e banhada pelo mar morno e entrecortada de rios, era radiante.
Foi sendo subjugada por assaltantes e delinqüentes e os habitantes já não suportavam mais sair à noite. O dia tornou-se também um inferno de insegurança. Cercada de miséria e sem perspectiva, com os ricos morando em verdadeiras ilhas de luxo e na outra margem do rio os jovens miseráveis cobiçando tudo o que a mídia oferecia.
A classe média, cada vez mais comprimida e oprimida arcava com pesados impostos, e em cada esquina máquinas eletrônicas de sangrias semafóricas, aterrorizavam seus cidadãos, que num dilema sheakespeariano não sabiam se era melhor serem assaltados pelas máquinas ou pelos bandidos.
Apesar dos impostos a polícia era mal paga, mal aparelhada e para sobreviver fazia conivências com os marginais, numa promiscuidade anticívica. A cada noite notícias de assaltos seguidos de morte tornavam-se rotina. Finais de semana com mais homicídios que nas guerras declaradas entre nações. O limite de pavor estava ultrapassando todos os limites da racionalidade e da sobrevivência.
Foi quando apareceu um certo capitão chamado William Lynch.
Saturada de políticos, de ongs, de comissões de direitos humanos, de sociedades protetoras de animais, de advogados, de juízes, de lombadas eletrônicas, de contas exorbitantes de energia, de impostos e mais impostos, de juros altos, de falta de emprego, de falta de perspectiva, de tribunais, de pastorais de igrejas, a população da cidade aderiu aos princípios do capitão.
Em cada grupamento de ruas contrataram seguranças armados com ordem para atirar ao menor suspeito. Em cada esquina onde havia assaltos armaram uma milícia que de tocaia em tocaia ia abatendo os marginais. Os membros das comissões de direitos humanos foram perseguidos, alguns mortos, assim como o pessoal das igrejas que ainda ousavam visitar presos nas penitenciárias.
Pela doutrina do capitão, bandido bom é bandido morto e quem é amigo de bandido é bandido também, e quem defende bandido é bandido também. O próprio capitão com sua guarda especial de elite, visitava periodicamente, de surpresa, as favelas, arrastando suspeitos que era para dar exemplo. As favelas e as comunidades pobres foram cercadas com altos muros encimados por grades elétricas e seus habitantes para entrar e sair passavam por pequenas guaritas guarnecidas.
Julgamentos sumários, se é que se pode chamar de julgamento, eliminavam os assaltantes, traficantes e consumidores de drogas. Não se gastava mais dinheiro com júris, e depois que o capitão descobriu o custo de mais de mil dólares por mês por cada preso mantido nas prisões e que muitos deles tinham mordomias que a maioria da população trabalhadora não tinha acesso, ele resolveu acabar de vez com as penitenciárias e adotou o modelo chinês de que a própria família do condenado paga a bala que é usada na sua cabeça. Se era duro com bandidos à paisana, mais ainda o era com os de farda.
O capitão pregava também o não pagamento de impostos até que se saneasse a corrução, pois ele não via retorno nenhum neste dinheiro extorquido do cidadão, como também o pagamento de multas, o que ele resolveu, com seu grupo, quebrando todos as lombadas eletrônicas da cidade. Pregava também o boicote aos aumentos exorbitantes de preço nas tarifas de energia, água e telefone instigando seus moradores a fazerem desvios clandestinos e receberem à bala os cobradores. Acabou com cotas para negros, índios e minorias.
A cidade aderiu quase que por completo às suas idéias, e foi ao delírio quando ele eliminou, em praça pública, os políticos corruptos.
Não sei como ela está hoje, pois há algum tempo atrás resolvi mudar-me de lá com minha família, pois estava começando a me seduzir pelas idéias do capitão.


Assuero Gomes

quinta-feira, 15 de maio de 2014

A cidade de Lynch sangra


Em junho de 2009 publiquei alguns artigos sobre o caos de violência que era Recife. Hoje vejo que nada mudou, até piorou.....





A cidade de Lynch sangra

Cortada de rios, vejo Recife com suas artérias e veias abertas, sangrando. Já não são os Flamboyants nem as tardes que tingem de vermelho nossos olhos, apenas o sangue de pessoas, derramado nos bueiros entupidos.
A cidade sangra o sangue da violência, da juventude estuprada nos seus anseios e sonhos. Pesadelos emanados do crack e da maconha, vidas sem valor nenhum, nem as deles nem as dos nossos filhos.
Nos out-doors e nos out-bus mulheres louras seminuas cobram o consumo de pares de tênis, na televisão os jogadores de futebol mostram seus dentes e seus carros de luxo, nos jornais as páginas pingam sangue.
Os jovens da periferia olham para trás e não vêem família, olham para frente e nada vêem, olham o agora e sentem o gosto metálico de uma bala entre os dentes. Crêem no deus imediato do crédito adquirido com o revolver, sonham com o carro do boy da faculdade particular.
Pais e mães aflitos oram todas as noites para que os filhos e as filhas retornem. Insones vasculham as janelas do apartamento ou o som das ruas noturnas na ansiedade do retorno. A cidade trama, a cidade mata.
O olhar cartesiano dos gestores mecanicamente esconde os corpos e pensa em aumentar o efetivo policial. Alardeiam um por cento a menos de mortes que há dez anos, três por cento de menos sangue que no carnaval anterior, quatro balas a menos que no último natal.
A cidade sangra aflita. A droga permeia no seu rastro maldito. Os ricos enviam seus filhos para o Canadá ou para a Europa, os remediados sonham com isso, e veem que a única solução plausível é a porta derradeira do aeroporto internacional Gilberto Freire/Guararapes.
O abismo que há entre o menor e o maior salário ganho entre os brasileiros é bem mais profundo do que possa imaginar nossa voraz e insaciável máquina de arrecadação de impostos. O abismo nos sugará a todos, com ou sem CPF, aliás, já está sugando a cada dia, a cada noite; é um abismo terrível, no qual vamos depositando nossos jovens, nossa esperança, nossa civilidade.
A cidade sangra pelos olhos, suas lágrimas vermelhas, sangra pelos ouvidos com os gritos lancinantes de mães solitárias, sangra pelos poros de cada janela aberta nas noites dos apartamentos.
Quantos corpos teremos que contar, insepultos em nossas mentes e corações? Não há relógios nem cronômetros, nem mãos cansadas de coveiros que consiga parar esta dança de número malditos.
A cidade do Recife sangra, Pernambuco e Brasil sangram mergulhados na impunidade, e afogam o futuro perdido de tantos jovens, todos vítimas precoces, imoladas no altar do descaso e do egoísmo de uma nação, mãe que não dar educação nem saúde a seus filhos, no entanto engorda políticos.
Sonhar, no entanto é preciso, assim como é impreciso determinar um tempo de futuro melhor, para os sobreviventes. Pelo próprio ofício do cristão, devemos esperar contra toda desesperança e criar pequenas fraternidades nos caminhos alternativos. 

Assuero Gomes

Médico e Escritor

domingo, 4 de maio de 2014

D. Tomás Balduíno, doutor da fé por Marcelo Barros






Dom Tomás Balduíno, doutor da fé

Marcelo Barros
Nosso profeta foi para o céu. Essa pode ter sido a reação espontânea de muitos irmãos e irmãs, companheiros de caminho de Dom Tomás Balduíno que, ao longo da vida, sentiram-se ajudados e estimulados por ele a seguir Jesus Cristo e a testemunhar no mundo o projeto divino de justiça e paz. Principalmente os índios e lavradores, povo da predileção do coração de Dom Tomás, podem hoje sentir-se órfãos pela partida de alguém que a eles serviu desde a juventude até o seu último suspiro aos quase 92 anos. Entretanto, tantos eles como nós que convivemos mais profundamente, ao longo dos anos, com esse verdadeiro pastor da Igreja, choramos a saudade de sua presença visível, mas nos consolamos por tantos exemplos e ensinamentos que ele nos deixa como grande profeta de uma Igreja renovada e renovadora a serviço de um mundo mais justo e de uma humanidade mais irmã.
Tive a graça de Deus de conviver com ele e, por um bom tempo, morar na mesma casa. Fui seu amigo e assessor desde 1977 até agora, quando a sua partida nos separou. Ainda há poucos dias, conversávamos sobre como apoiar a renovação da Igreja proposta pelo papa Francisco e ajudar as Igrejas locais a assumi-la. Assim como Dom Hélder Câmara, no Brasil, Dom Oscar Romero, em El Salvador e Dom Samuel Ruiz, no sul do México, Dom Tomás soube revitalizar a missão do bispo como  profeta da Palavra de Deus para o mundo. Para os oprimidos do mundo, ele foi realmente, como escreveu o profeta João no Apocalipse: “irmão e companheiro nas tribulações e no testemunho do reino” (Ap 1, 9).
Exatamente, por essa sua compreensão da fé e do ministério episcopal, Dom Tomás tornou-se mesmo para não crentes testemunha autorizada de Jesus, ilustre doutor da fé e de uma espiritualidade libertadora. Ele nunca restringiu sua missão ao âmbito da Igreja. Soube sempre ser uma presença de irmão e companheiro solidário com as lutas sociais do povo, aliado incondicional dos lavradores e dos índios na sua legítima e evangélica luta pela terra e por uma vida digna. Com 85 anos, Dom Tomás participou comigo da delegação brasileira que se reuniu na Bolívia com militantes sociais e intelectuais de todo o mundo para recordar a figura de Che Guevara no 40º aniversário de sua morte em Valle Grande, Bolívia. Um ano depois, viajamos juntos a Caracas, como observadores internacionais das eleições presidenciais da Venezuela. E até o fim de sua vida, sua palavra profética foi sempre de apoio claro ao caminho bolivariano que aquele povo irmão, com tanto esforço e incompreensões, empreende. Sua voz forte e clara ressoou em todos os continentes. A todos ele deixa um testemunho de coragem, confiança no futuro e opção pela justiça e pela paz.
A tendência natural é que as pessoas sejam mais abertas e livres quando jovens. À medida que a idade vai chegando, se tornam menos livres e mais conservadoras. É verdade que, hoje, em certos ambientes do clero e de algumas congregações, encontramos jovens mais conservadores e preocupados com a lei do que a geração mais velha. Mas, isso não é natural. Tem razões e explicações mais estratégicas e menos espirituais. Não tem nada a ver com o que Deus fez acontecer na vida de profetas como Dom Hélder Câmara e Dr. Alceu Amoroso Lima ou do papa bom João XXIII que, quanto mais idosos, mais se abriram interiormente. Eles souberam renovar-se permanentemente. Quanto mais idosos, mais se tornaram homens livres e testemunhas da liberdade do Espírito. Dom Tomás percorreu esse processo espiritual e humano. Nesse caminho, agora, do céu, ele nos convida, a prosseguir e a aprofundar sempre a mística do reino de Deus e vivê-la no compromisso social e político junto com os empobrecidos e pequeninos desse mundo. A essas alturas, Tomás já ouviu de Jesus, seu mestre, a palavra esperada: “Muito bem, servo bom e fiel, entra na alegria do teu Senhor” (Mt 25, 21). Dom Tomás, doutor da fé e profeta desses tempos conturbados, rogai por nós.


sábado, 3 de maio de 2014

Precipício





Precipício


                                                        Escultura de Salvador Dalí, em Barcelona

Quando fores fazer um precipício é importante lembrares de alguns detalhes. Presta bem atenção pois podes por tudo a perder e ao final teu precipício ser tão pequeno que nem teu pé caberia dentro dele.
Lembra de que deves começar a cavar aos poucos, retirando pequenas porções de terra de cada vez, remover pedras e colocá-las ao teu redor para que ninguém te perturbe. Criar um precipício é um trabalho que requer muita paciência e isolamento. Não se consegue um precipício sem esforço solitário, dedicação e abnegação. Dia e noite, quer chova ou faça sol, ignora as pessoas ao teu redor, pois elas certamente atrapalhariam teu desiderato. Quanto mais isolado de tudo e de todos, mais chance terás de atingir teu objetivo.
É bom também tapares teus ouvidos hermeticamente para que não escutes e se puderes põe uma viseira lateral nos teus olhos para que não vejas ao teu redor. Pensar é o ato mais solitário do ser humano,no entanto é o que o torna diferente do existir dos outros seres. Pensar é um ato absoluto, solitário e paradoxalmente o ato de maior liberdade a que se pode chegar nessa vida.
Cavar um precipício é um ato solitário, porém não libertário, pois ele aprisiona a quem o pratica ao próprio precipício.
Quando cavares o precipício lembra-te do abismo. Nem todo precipício se torna um abismo, mas todo abismo já é por si só um precipício. Cuida para cavar continuamente e cada vez mais profundo. Escolhe com cuidado um terreno seco e pedregoso, de preferência com pedras pontiagudas. Fica atento para que não surja água no teu labor, pois a água estraga um precipício, uma vez que faz flutuar e quem sabe, se for muita, transbordar. A água é luz. Cava teu precipicio no escuro, tão escuro quanto possas, de tal forma que não vejas nem deixes ninguém ver. Um precipício digno desse nome há de ser profundo, pedregoso, árido, escuro, íngreme, e largo, muito largo. O precipício ideal torna-se um abismo, onde tu irás e levarás àqueles que por acaso ainda estejam ao teu derredor. Um precipício é fiel ao dono, pois lho segue aonde for, sempre.
Para se cavar um grande precipício há de se cavar com as próprias mãos, com o sangue misturando à areia o próprio suor das noites acordadas no escuro de sua existência. Quando teus dedos já não forem mais como dedos, teus olhos já suarem lágrimas, teus sonhos sepultados ali na argamassa da terra revolvida e não houver mais esperança, quando tudo isso estiver posto no antibanquete da mesa do precipício, para um pouco. Para porque ele está quase pronto. Há um ponto em quem constrói precipícios, nessa engenharia maldita, que não há mais retorno. Um ponto crucial.
Acaso ao terminares a tua labuta e vendo teu trabalho concluído, e sentires medo do que tu mesmo cavaste, procura alguém que pode estar perto de ti, suave e silencioso como uma aranha. Pode acontecer que te ofereça um fio, um pequeno fio como de seda. Aceita pois, pode ser tua única maneira de ultrapassar teu precipício.

Assuero Gomes