Abandono
Sobre a dor de um abandonado nada posso dizer que não soe
estranho para mim, mas cabe pôr algumas palavras no sentimento, que se não meu,
o será de alguns que se perderam de si mesmos, quando de seus entes sentidos
queridos, não o foram, ou se foram, perderam-se em alguma página do tempo,
virada às avessas.
O abandono dos anciãos em asilos escuros, quando o são, já
dói tanto que de dor não se deveria mais procurar para colocar nas tintas
pretas sobre um fundo branco, mas anciãos, pelo menos já viveram, e certamente
entre momentos e instantes, ou até mesmo dias inteiros felizes, caminharam na
vida, ora trôpegos, ora escorregadios, ora vibrantes e altaneiros.
O que me agride mais é tentar sentir, se assim possível
fosse, o que sente uma criança abandonada pelos seus pais, e mais ainda, se a
dor pudesse ser mensurável, a dor maior de ser abandonada pela mãe.
Imagino, em exercício lúdico inverso, a sensação que é de se
ter sido não querido o suficiente pela mãe, a tal extremo ponto de ser deixado
para outrem, mesmo que seja uma avó, ou uma tia, ou ainda um estranho.
Com uma boca com dentes de vidro tentando morder o destino
cão, ou com ouvidos surdos, tão surdos, que o coração batendo por dentro ressoa
ao vento que não existe, numa brisa vazia, e os olhos cegos, blindados à luz, e
você boiando num mar, precipitado sobre um naco de madeira náufraga, à deriva,
à deriva...
Matar a própria mãe é o pior crime que um ser humano jamais
poderia suportar, e no movimento inverso, mas espelho, sentir-se abandonado
pela própria mãe deve ser o estranhamento mais profundo, mais amargo e obscuro,
mais pesado que se tenha a carregar pela vida afora até a consumação do seu
próprio tempo.
Quanta ternura, afeto e amor, deve um pequeno ser humano
receber para sobreviver numa situação dessas!
Nada poderá romper essa saudade do que poderia ter sido e
não foi, de que culpa teve que não conseguiu gerar amor naquela que lhe deu a
vida, na inconsistência de suas lembranças que jamais foram nem serão
elaboradas, do riso materno, do afago, da mama, do carinho por sobre os cabelos
que não houve... mas sobreviver é preciso, e é possível em quase todas as
situações do mundo, e aí entra a genialidade da raça humana na sua capacidade
quase infinita de superação.
Só com muito amor a mente do abandonado poderá perdoar a si
mesmo e consequentemente mais tarde à sociedade humana, o ele ter existido e
sobrevivido.
Penso que uma certeza deve ser inculcada sempre, tornando-a
uma certeza inabalável, uma pedra de rocha alicerçando por toda a existência,
como um dogma, um mantra, uma filosofia gravada na alma e repetida no coração,
a certeza absoluta que Deus a ama.
Aconteça o inesperado, abra-se o mar ou o precipício, caia o
céu e os astros celestes, abalem-se os fundamentos da Terra, caiam anjos e
tempestades, bonanças e refrigérios, secas ou enchentes, dilúvios até, mas
nada, nada, afastará o amor de Deus, um só milímetro sequer.
A certeza do Amor, profundo, eterno e incondicional de Deus,
por todos os seus filhos e filhas, e é essa força consciente e inconsciente que
a carrega nos braços, sem mesmo a pessoa saber.
Assuero Gomes