A última viagem do Elefante Cego
O condutor do Elefante Cego, como
um pastor, chegou antes nos verdes prados. No seu passo lento o paquiderme,
ensaiava a Cegueira, quando lia o Evangelho segundo Jesus Cristo, nos jardins
do Convento, transformado em memorial.
Foi no ano da Morte de Ricardo
Reis, quando este, pensando em estar singrando os mares de Camões, numa Jangada
de Pedra, para escapar do Cerco de Lisboa, procurou a Terra do Pecado, mas esta
na verdade era a própria Caverna, esta terra, onde se refugiou. Na sua
estrutura pesada e tendo a cegueira como guia, foi imprescindível que o
condutor com toda sua lucidez, Levantando do Chão, guiasse o elefante na sua
última jornada.
No seu caminho, muito à frente do
animal, o condutor recebeu pedras, em vez de diamantes, do seu irmão Caim. Seu
irmão, sangue do seu sangue verde vermelho, que rasgando o Ensaio sobre a
Lucidez, preferiu As Intermitências da Morte, e quis condenar o condutor a uma
grande e medieval fogueira inquisitorial.
Escapando, para jogar mais luz
sobre o elefante, tentando restituir-lhe a visão, foi refugiar-se em terras de
Cervantes, onde teve boa acolhida, entre primos da casa ibérica, talvez na ilha
de Sancho Pança, talvez nas páginas do Conto da Ilha Desconhecida, entre a
aridez da terra e dos homens.
O pastor-condutor finalmente
alçou vôo e desvencilhado do peso do seu rebanho de um único e pesado
quadrúpede, mergulhou na luz.
Banhado em luz, livre de toda
presença obscura, viu plenamente.
Levava na sua pequena valise os
óculos grossos, que já não mais necessitava, as anotações de Lanzarote e suas
Pequenas Memórias, em Apontamentos. Embevecido de luz lembrou da sua pequena
Bagagem de Viajante, viajante Deste Mundo e do Outro. Trazia na lapela, com
orgulho, um pequeno martelo e uma foice, tão carcomidos e desgastados pelo
tempo, que quase não se via mais.
“Dar luz aos cegos é prerrogativa
de Deus” disse-lhe uma voz feminina, doce e suave “Mesmo para aqueles que não
acreditam Nele?” perguntou o pastor de elefante “Especialmente para aqueles que
não acreditam Nele” “E o meu elefante, como caminhará na sua escuridão?” “O
elefante é pesado e teimoso. Pensa que tudo pode devido à sua força e à sua
tromba, mas caminha para o Abismo” “É porque é cego e não vê” “Ele não vê
porque é cego, no entanto não sabe que é cego e pensa que vê” “Se Deus existe,
por que fez ele cego?” “Ele não é cego de nascença, ele é cego porque pensa que
vê e não sabe que é cego”.

Silencioso ficou o pastor,
extasiado que estava com tanta luz, como bálsamo para seus olhos, que se mantinham
enxutos. A voz feminina falou então “Entra, vamos ver e assistir aos ensaios de
algumas peças” “Quais?” “Podes escolher, A Noite, Don Giovanni, Que farei com
este Livro? E A Segunda Vida de Francisco de Assis, que agora mesmo a está
ensaiando com Clara” “Como permitem que ensaiem essas peças aqui?” “Gostamos de
toda Criação” “Posso ficar aqui vendo tudo?” “Aqui é sua casa. Aliás, aqui é a
casa de todos os povos” “Já estiveste na minha casa do outro lado do mar?”
“Sim, numa Viagem a Portugal. Desde então e sempre, nenhum filho desta terra
fica fora da minha proteção”.
Para os que ficamos cavalgando o Elefante, talvez um pouco mais cegos
que de costume, na despedida do último cavaleiro lusófono, Saramago.
Assuero Gomes
Escritor e Médico