Visitantes

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O professor cego que ensinava música aos surdos





O professor cego que ensinava música aos surdos

Havia dormido por quarenta anos. Despertou do seu sono profundo, pensando na guerra fria, na maravilha da Ilha, nos barbudos, em mudar o mundo, em escovar os dentes, em pentear a barba e assanhar os cabelos compridos. Em conhecer a China no porão de um navio. Em viajar de motocicleta com mochila nas costas.
Incomodado com a primeira claridade depois de tanto tempo no reino de Morfeu, saiu perambulando pelas ruas, procurando um ônibus elétrico. Nas ruas caóticas de tanto carro e ônibus aproveitou para pregar contra o capitalismo e a Coca Cola.
Desnorteado no seu perambuleio e quase cego da luz afiada nas retinas, se escondia a cada esquina quando via um guarda de trânsito. Procurava a penumbra. Lembrou que estava na hora de voltar ao trabalho, ensinar música na escola pública. Lutar pelos direitos dos pobres. Acabar com o consumismo. Destruir lojas e bancos. Não conhecia shoping centers. Jogar bolas de gude nos cavalos da polícia.
Onde ficava sua escola municipal? Estava tonto e quase sem enxergar. Precisava ir lá organizar uma greve. Antes passaria no sindicato. E saiu assim tateando e perguntando. Não viu nenhum ônibus elétrico, nem notou a ausência dos fios. Nem sua camiseta quase rota. Nem a calça jeans desbotada muito curta já. Nem os chinelões de couro puídos. E foi trafegando por praças e lembranças mal dormidas, e sonhos e pesadelos, ruas desviadas, buracos, calçadas descalças, sirenes e gritos e choros e pedidos esmoleres.
É preciso organizar a resistência, a passeata, o comício, distribuir os panfletos. Esconder os esconderijos, delatar os camaradas e companheiros que traíram a causa. Chegar à escola o quanto antes, estava atrasado mais uma vez. Os alunos esperando. O diretor maldito, reacionário. O salário miserável. O ônibus que não passa. O calor infernal. O barulho. As buzinas. As descargas. Os bueiros transbordando. O odor fétido. E a escola que não chega.
Atrasar-se trinta minutos é grave. Quarenta anos já é imperceptível. Ufa! Finalmente. A escola está no mesmo lugar. Escola Brasil. As tintas desbotadas, as grades enferrujadas. E esses olhos que não estão enxergando quase nada. Antes da aula, concentrar com os professores. Derrubar o diretor. O mundo está todo errado. Maldita propaganda capitalista. Todo mundo quer uma calça Lee e um Karmann Ghia. Um cigarro importado Marlboro.
Estranho a escola está vazia. As salas de aula viraram quartos. Brancos quartos. Na sala do diretor as mesas brancas e as cadeiras brancas presas no chão. Não estava enxergando mais nada. Uma voz perguntou, ao fundo, “é o novo professor?” Sim. “Siga-me. As crianças estão esperando há muito tempo. Se atrasar assim, mais de quinze minutos de tolerância, estará despedido”.
Apontou as crianças. Não viu. “Qual o assunto de hoje? Pode falar alto,  são surdas!” Onde está o violão? “O pessoal do psiquiátrico que funcionava aqui, quebrou”.

Assuero Gomes
Médico e escritor




Nenhum comentário:

Postar um comentário