A renúncia do Papa
Ratzinger me surpreende mais uma vez. Confesso que quando da
sua escolha para suceder João Paulo II uma decepção e um desânimo tomou conta
do espírito de uma parte de cristãos católicos que almejavam uma Igreja mais
progressista nos moldes e orientações do Concílio Vaticano II.

Surpreendeu-me, como já tive oportunidade de expressar em
outro artigo, a maneira como ele conseguiu ouvir opiniões de outras vozes antes
de tomar algumas decisões. A grande vantagem de Bento XVI é que ele é um
teólogo. A diferença de quem estuda e reflete honestamente é saber de suas
próprias limitações. Ratzinger jamais foi um messiânico, justiça se faça. Ele
permitiu que o lado obscuro e sujo da Igreja viesse à tona, especificamente a
questão da pedofilia e a financeira.
Um breve papado de oito anos, mas que mergulhou
profundamente na história. O segundo papa que renuncia de livre e espontânea
vontade, em dois mil anos.
Certamente a mídia vai expor à exaustão a sua renúncia,
elucubrações sobre o assunto vão ocupar a mente de milhares e milhares de
pessoas, outra dezena de livros de ficção e conspirações vai ser editada e vai
fazer a fortuna de alguns. As causas da renúncia vão ser pesquisadas e
aventadas com mil e uma possibilidades: doença, política interna, política
externa, etc... Dificuldades de ordem teológica e administrativa vão ser
levantadas.
O Papa renunciando continua infalível? O sucessor tomando
uma atitude ou emitindo um decreto ou um ensinamento diferente de Bento XVI, a
quem os católicos deverão seguir? Deixando de ser Papa a assistência do
Espírito Santo recairá sobre o próximo automaticamente? Ele deixa de ser o
administrador da Igreja e chefe de Estado, mas continua iluminado? Será o que,
depois da abdicação: um bispo, um cardeal, ocupará um cargo especial, um Papa
honorário?
Questionamentos de ordem teológica, filosófica e prática
serão inúmeros, mas a Igreja com sua sabedoria saberá conduzir-se através dos
caminhos da humanidade, de maneira lenta, dando respostas atrasadas a perguntas
urgentes, respondendo rapidamente a perguntas sem respostas, criando perguntas
sem ter as respostas, com suas falhas, seus pecados, suas virtudes, erros e
acertos, mas caminhando, completando no próprio corpo as chagas do Cristo, que
misteriosamente continua amando-a.
Bento XVI fez um movimento incomensurável e de
inquestionável amplitude, que vai repercutir na história da Igreja e, portanto
na história da humanidade.
A sensação que me passa, decorridos alguns dias, é a de um
profeta que vendo os que deveriam ser pastores do povo, imersos num turbilhão
de situações conflituosas com a vontade de Deus, faz um último, solene,
surpreendente, tranquilo, consciente e único gesto profético, como ator
definitivo de uma cena definitiva, retirando-se para se manter radicalmente
inserido, protagonista e eloquente no silêncio de quem não comunga com a
realidade na qual a instituição está mergulhada.
Ratzinger me surpreendeu, como surpreendeu a um quarto da
população mundial. Mergulhou na sua própria humanidade, um mergulho profundo e
sereno, como daqueles que vislumbrando a imensidão do mar se questionam da sua
própria imagem refletida numa pequena poça no seu banheiro ou espelho de
barbear, e se apaixonando pelo mar mergulham despidos de si próprios.
Bento XVI mostrou que a infalibilidade do Papa é possível,
pois está inserida na sua falibilidade humana.
Assuero Gomes
Cristão católico leigo da arquidiocese de Olinda e Recife
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