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sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A emergência do Inferno






A emergência do Inferno

Imagine-se por um instante numa noite tenebrosa de sábado na cidade do Recife. Um dos numerosos acidentados de motocicleta no trânsito macabro procurando a emergência de um hospital público de grande porte, qualquer um. Atendido pelo SAMU, de maneira eficiente, tanto em rapidez quanto em qualidade técnica.
Imagine-se chegando entre dores e pânico no hospital de referência, o maior do Nordeste. Fraturas múltiplas, quase amputação de membro inferior. Para cirurgia imediata.
Imagine-se agora na pele, no corpo, na mente, na alma e no jaleco do único traumatologista da noite. Escala de plantão incompleta, onde deveria haver cinco só há você. Há algum tempo você trabalha sozinho nesta noite tenebrosa de uma cidade sombria. Não contrataram os concursados, outro desistiu pela situação extrema de estresse. Você tem que atender os doentes graves amontoados em macas e chão no corredor. Você não tem o que comer de madrugada, nem onde comprar, a cozinha e copa fechadas, proibido entrar alimentos de fora, as precárias barracas da calçada foram demolidas.
Você como paciente talvez grite, talvez esteja aturdido, talvez nem escute mais, nem sinta mais...você como médico tem que subir para operar, tem que atender, tem que escolher. Avatares de azul rondam sua pessoa como zumbis, de caderneta e caneta em punho, anotando seus passos, seus horários, dando ordens, sem mesmo serem arremedos de médicos, apenas fantasmas públicos travestidos de azul.
Sua perna já não sente, já não sente você. Você se confunde na dor, será o médico, será o paciente? Quem você se tornou?
Os avatares tomam nota. Ligam para o diretor médico. Mandem o doutor subir para operar, mesmo sem equipe. O inferno não pode parar. Mandem dar alta aos pacientes do chão, do corredor, da morte. Os avatares ligam para o diretor administrativo. Suspendam o estacionamento do médico. Anotem a hora da entrada, da saída, do sanitário, não deixem descansar, são 12 horas seguidas de olhos abertos sem piscar, sem beber água e sem comer.
Deitam e rolam os senhores do inferno, queimando entre suas brasas os depoimentos, as estatísticas, os processos contra assédio moral. O inferno não pode parar, assim como o circo e seu espetáculo público privado. Vistam o médico de demônio, e mostrem que o serviço público é mesmo o Inferno, que Dante coraria de vergonha.
Sobe o paciente, sobe o médico, sobem e sobem. O relógio não passa, as macas não passam, a dor não passa, nem as sirenes do SAMU que eficientemente trazem os pacientes do chão sangrento desta cidade de Lynch, ou das UPAS. Na verdade estão chegando mais vivos, quase mortos, mas vivos. Morrem os médicos, o serviço público, os avatares já estão mortos, como lavadores de almas.
Finalmente surge o dia, com seus primeiros raios de domingo. O paciente respira. Tem apenas 17 anos. Está operado. Bem operado. Vai salvar sua vida, sua perna, seus ossos. O médico olha o relógio, tão devagar, tão devagar. Veste seu jaleco enquanto espera seu rendeiro, que está lá embaixo, procurando estacionar, sem estacionamento. E a vida continua, vencendo a morte, às vezes, nas grandes emergências do Recife.

Assuero Gomes
Médico e escritor

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