A Medicina e a Religião
Sabemos que na antiguidade , mesmo antes até , a prática da cura dos males , fundia e confundia a religião e a medicina . Hipócrates fez uma das primeiras tentativas de que se tem registro de separar as duas. Com René Descartes (1596-1650) o conhecimento humano tomou um impulso avassalador , pois separando-o em duas grandes áreas , o que seria ‘essencial ’ e ‘acidental ’, permitiu que se pudesse mensurar , classificar , “matematicalizar”, instrumentalizar tudo o que fosse inerente à ciência , libertando-a a princípio das áreas concernentes à filosofia , à religião , à teologia , à ética , etc.
O estado passou a ser laico , a medicina e as manifestações artísticas. No entanto , engana-se quem pensa que tal separação deu-se de fato , embora teoricamente tenha se dado de direito .
A influência da religião está presente em todo e qualquer ato da vida humana , até para os ateus e agnósticos , por paradoxal que seja. A religião faz parte e é um dos pilares da sustentação do ser humano , junto com seu lado psicológico e biológico (ao meu ver não podemos separá-los).
A medicina , portanto , é influenciada pela religião ; talvez nem tanto na sua vertente científica (e mesmo esta recebe grande influência ), mas na sua aplicação prática na vida dos pacientes e seus familiares . Sem aprofundarmos, já podemos vislumbrar a veracidade desta assertiva: por que algumas religiões não permitem transfusão de sangue e no entanto permitem transplantes de órgãos ? Por que outras, cujo povo é celeiro de grandes cientistas e tem uma das medicinas mais avançadas do mundo , não permite transplantes ? Por que para algumas o aborto (repudiado por todas) é condenável em diferentes fases da vida do embrião e outras só consideram um ser vivo independente , quando o feto “sai” do útero da mãe ?
A morte é a razão primeira e última da religião e da medicina . Não fosse a morte , a rigor não haveria necessidade de uma nem de outra . Ambas tentam satisfazer a grande , profunda e insondável questão da humanidade . Que dizer então da influência das religiões na morte e no morrer ? Eutanásia , distanásia , ortotanásia...
Aprofundando mais : há dois grandes ramos de religiões , com uma diferença essencial , que influencia toda a maneira de ver , julgar e agir no mundo , a história , a filosofia , a educação , a terapêutica , o convívio conjugal, familiar , social , tudo , tudo . Um ramo mais antigo que é o místico e o outro mais recente ( + 4.000 anos ), o profético . No primeiro há uma intuição que a revelação do divino seria percebida pelos humanos (geralmente alguma liderança espiritual ) ou por algumas pequenas comunidades de maneira quase atemporal geralmente orientando a uma atitude pessoal de comunicação com Deus . São as grandes religiões orientais , especialmente o budismo e as religiões da Índia .
No segundo , o ramo profético , há a crença que o próprio Deus irrompeu na História e a influenciou e influencia até hoje e sempre . Podendo-se precisar a data destas manifestações concretas do divino . O acontecimento fundamental foi a intervenção de Yahweh no Egito para libertar o povo hebreu da escravidão . As três maiores religiões deste ramo são o Judaísmo , o Cristianismo e o Islamismo .
Nas religiões místicas há, sem querer generalizar , um conceito de que a vida , e portanto a história , são cíclicas. O conceito de encarnação e reencarnação está inserido aí . Outro conceito importantíssimo que influencia a ação da medicina , é o conceito do corpo , pois nestas religiões há uma percepção que o ser humano “tem” um corpo e uma alma . O ser humano é parte da “natureza ” universal e está condenado ao eterno retorno até que se dissolva na divindade .
Nas religiões proféticas a visão do mundo e da história sugere que há uma progressão linear , sem retorno . Quanto à questão do corpo , elas acreditam que o ser humano “é” o corpo animado pelo sopro de Deus . O ser humano é parte da “natureza ” com um gérmen da divindade e “passando” por este estágio terreno , permaneceria com sua individualidade e chegaria ao convívio do divino na próxima e definitiva vida .
Daí a questão da ressurreição e da reencarnação. Daí a questão da alopatia e da homeopatia . A questão dos transplantes e reação da família . Como dizer a uma mãe e a um pai , que seu filho , mesmo respirando e com o coração pulsando está morto ? Se uns acham que ele é um corpo , como arrancar um pedaço e dá-lo a outro , no entanto se acham que ele tem um corpo ... Como é vista a tatuagem ? O piercing? A circuncisão de crianças ? Por que batizar um feto que não se sabe bem se já está morto ? A consulta, a pesquisa diagnóstica , a terapia serão as mesmas em meninas de qualquer religião ? Ética e moral são a mesma coisa ? Religião e ética ? Algumas dietas serão permitidas, alguns medicamentos , alguns tratamentos invasivos ? As experiências com animais e até em humanos? A doença como castigo, purgação, purificação?
Creio que junto ao ensino da ética e bioética nas escolas de medicina , faz-se necessário um estudo das diversas religiões , para que cada vez mais aprofundado no ser humano o médico saiba exercer sua arte com dignidade e paixão .
Assuero Gomes
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