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terça-feira, 13 de setembro de 2011

O lavrador, o intelectual e o profeta.

                                           O lavrador, o intelectual e o profeta.


Estava o intelectual sobre as costas de um lavrador, que arava o campo do seu senhor, sob sol a pino. Ambos eram homens honestos. O primeiro, que era versado em letras, filosofia, arte e teologia, compungido com a sorte do pobre homem, pesquisava, lia, estudava a condição da miséria humana, a exploração do trabalho pelo capital, procurava em Marx, Lênin, Tolstoi, Max Weber, Voltaire, uma solução para a triste sina daquele campesino.
Quanto ao lavrador, pensava num prato de comida mais farto, num pedaço de doce, num copo de água limpa. Pensava nos filhos e nas filhas e na mulher que tinham a mesma desdita dele, arar, semear e colher a terra dos outros, os frutos dos outros, e esse sol inclemente...
O intelectual não saía das costas do lavrador, mesmo com toda a leveza de sua piedade, ele pesava bastante, naquele dorso cansado e recurvado não tanto pela idade, mas pelo trabalho sem descanso, pela labuta feroz, pela desnutrição, pela falta de esperança.
Passando por ali um sacerdote, apressado para celebrar a missa dominical, em preparação para a páscoa, mesmo admirando o inusitado do quadro, cumprimentou o intelectual e passou ao largo. O homem no arado não pode falar com o padre, pois o peso nas suas costas não permitia que erguesse a cabeça; logo em seguida passou o político, que fez um pequeno discurso sobre o valor do trabalho e do aprendizado e da cultura, mas como também ia para a igreja se preparar para a celebração, foi logo se retirando.
O suor pingava da testa, dos ombros e dos olhos do trabalhador, e quase lágrimas pingavam dos olhos do professor, aliás, mestre e doutor. Mas a situação permanecia como que imóvel, não fosse pelo ir i vir do agricultor, cavando a terra e jogando as sementes e apartando as ervas daninhas.
O doutor estava tão acostumado àquela posição que já não imaginava ser possível viver em outra situação, e o lavrador pensava que o destino e a fatalidade o haviam escolhido para que assim vivesse para sempre, até quando a morte o libertasse.
O que estava em cima sonhava com revolução, luta de classes e poesia dialética, o de baixo continuava sonhando com comida e um pedaço de terra só seu, numa simbiose cruel, os dois conviviam entre os corpos e os sonhos, entre as aspirações e as nulas realizações. Quanto mais livros o intelectual lia, mais peso sobre os ombros do lavrador era acrescido. Parecia, de longe, uma só pessoa.
Helder chegou ao local. Achou estranhíssima a cena. Viu a Europa sobre a África. Viu a Igreja sobre o Povo de Deus, viu o norte sobre a América Latina; então, indignado, como ousa ser a indignação dos profetas, tomou o arado da mão do pobre, pediu ao professor para colher algumas espigas, sentou-se à sombra e fez uma refeição com eles.

Assuero Gomes
Médico e escritor

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