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quarta-feira, 30 de maio de 2012

As noites de Cabíria





As noites de Cabíria



Certamente Fellini na noite de Roma não poderia ter se inspirado melhor. Como num poema, a vida de Cabíria é contada com delicadeza e sensibilidade. Quem se esquecerá de Giuleta Masina interpretando de maneira genial, a prostitura que apesar de todos os dissabores da vida continua acreditando na humanidade, numa vida melhor num futuro menos cinzento?

Poderia imaginar Cabíria, no auge dos anos 50, com seus amores noturnos como uma nação latina, quem sabe o nome não traga à lembrança, algo do Caribe ou da nossa latina América? Cinquenta anos se passará em 2007 desse relato em celulose,e certamante incólume ao tempo, Cabíria vagueia nas noites de meu país, que como ela, teve tantos amantes quantas falsas juras de amor, paixões perdidas em noites quentes e escuras.

Amante primeira de um general que lhe prometera felicidade eterna numa cama no paraíso, em vez, algemou-lhe as mãos e com o açoite lhe roubou a liberdade em calabouços úmidos e amordaçou-lhe a boca em vez de beijos, e vendou-lhe os olhos em vez de cinema; mais adiante em sua peregrinação noturna Cabíria deixou-se enlevar-se pela figura de um personagem de outro filme, um rapaz de dolce vita, que lhe prometendo modernidade e carros novos, e uma turnê na europa, despojou-lhe da parca poupança que a duras penas juntara, e foi-se para sempre sem deixar saudades.

A personagem de Fellini tem uma característica muito especial, que a torna quase lúdica, ela ri de si mesma e continua acreditando nas pessoas e em Deus. A cena em que procura a solução para sua vida amorosa através de um milagre, e que foi muito tempo censurada pela Igreja, é antológica.

Cabíria, continua vivendo, mesmo destroçado o seu coração, por sobre os cacos de vidro de sua existência, e desta vez a vemos deslumbrada por um professor, doutor, homem distinto, de grande erudição. Versado em letras e sociologia, com discurso em todas as universidades do primeiro mundo. Seduziu nossa heroína, de vida nada fácil. Impossível homem de tal quilate ter uma conduta que não seja digna. Um verdadeiro cavalheiro, como um nobre italiano, da corte dos Medici. Ah, Cabíria, como te deixas enganar pelas aparências...Logo que o culto amante sentiu ter conquistado definitivamente o coração da mulher, diga-se, o mais puro de todos os corações dos personagens da película, privatizou sua casa, seu ônibus, seu posto de saúde, sua energia, sua água e sorrindo sutilmente, como é o sorriso dos intelectuais, zombava, junto a seus pares da fala errada de Cabíria, dos seus deslizes gramaticais, da sua pouca cultura européia. Um duro golpe na vida dela, mas a força dos sobreviventes é algo sobrehumano.

Desiludida, jurou jamais se apaixonar novamente, jamais abrir seus lábios para homem algum, jamais deixar se seduzir por quem quer que fosse.

O coração das mulheres é complexo, profundo e imperscrutável, e acontecendo que Cabíria recebendo cartas e bilhetes de um rapaz trabalhador, por longo e longo tempo, foi cedendo, foi esquecendo seu passado de decepções e foi se apaixonando. Esse era diferente, lhe fazia a corte com sinceridade, era humilde e honesto, prometera-lhe levar para conhecer a família, era de origem igual a dela. Embora arrasada financeiramente pelas suas aventuras amorosas anteriores, ela, verdadeira trabalhadora, conseguiu juntar um pouco de dinheiro, e tendo acertado casamento e lua-de-mel, vendeu sua única e miserável casa, despediu-se das colegas e partiu ao encontro de sua viagem definitiva, com seu homem ideal.

O final do filme alguns dos leitores e leitoras talvez se lembrem. Não ficou em mim a recordação melancólica do último amante de Cabíria fugindo com a mala com o dinheiro dela, fugindo cruelmente com sua esperança, mais valiosa que o dinheiro. Ficou em mim a força da sobrevivente, que nos dá uma lição de vida e de fé. Ergue a cabeça e vai trabalhar no que lhe restou da vida, na noite da periferia.  Cabeça erguida, encontrando motivo para rir e seguir adiante e sonhar com um fio de luz, na projeção de felicidade numa tela utópica, antes que o filme apague e se fechem as cortinas.



Assuero Gomes

assuerogomes@terra.com.br

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