A serena majestade de Maria
Assim como uma visão sem ser
visão, apenas sensação de comunicação, como um vento de brisa suave invadindo o
instante da alma em oração, ousei fazer uma pergunta, que na verdade não fui eu
quem a fiz, talvez o sopro do Espírito.
Ele quis revelar através daquela
que é repleta do Espírito, numa pergunta, que foi se desfolhando em outras, até
que o véu deixasse deslumbrar a luz.
A pergunta, súbita e
aparentemente sem sentido, foi assim revelada: ‘Senhora, se durante a infância
do Menino, a senhora antevendo o sofrimento que haveria de vir, pedisse ao Pai,
para que fosse mudado o desenvolver da história, Ele lhe teria atendido?’ Então
como um sorriso quase imperceptível, suave como o sopro matutino, Ela respondeu
apenas ‘Sim’. Mas a ousadia do vento que sopra onde quer e quando quer instigou
para mais uma pergunta: ‘A Senhora pressentia o que o Menino haveria de
passar?’ Mais uma vez, com uma serena majestade Ela se dignou a olhar para
baixo e meigamente, como só podem ser as mães amorosas, respondeu ‘Sim’.
Não ousando mais nada perguntar e
invadido por uma sensação de imensa paz, aquietei-me contemplativo; mas em
seguida, brotou dentro do meu coração uma última pergunta, vinda de não sei
onde e feita à revelia da razão e da emoção: ‘A Senhora, em algum momento, teve
vontade de pedir ao Pai?’ Ah, serena majestade de olhar e sorrir! Tão pequeno
me senti naquele momento e ao mesmo tempo tão compreendido que a derradeira
resposta me fez perceber: ‘Não’.
Nesse momento a contemplação
levou-me a um estranho lugar onde eu nunca havia imaginado poder estar, o
coração do discípulo amado aos pés da cruz e compreendi então, assim de
repente, em plenitude as palavras do Senhor: ‘Mãe, eis aí o teu filho. Filho,
eis aí a tua Mãe’.
O que poderia eu mais pensar ou
perguntar? Senão apenas sentir uma imersão numa paz sublime, como se num oceano
de luz estivesse a flutuar, como numa água-viva sideral, cósmica, entre jardins
de estrelas.
O que poderia mais desejar, senão
apenas permanecer? E permanecendo armar
como que uma tenda, assim pertinho do Mistério, quase o tocando, doce mistério
de onde emana toda forma de vida. E permanecendo não mais sofrer, nem mais
sonhar, apenas sentir a luz em plenitude.
A Senhora, no entanto, com seu
sorriso terno, parecia perceber todo o sentimento que emanava de mim, pois
neste estado só se é sentimento, não mais matéria nem ilusão, não mais
inteligência nem raciocínio, apenas sentimento, e fazia-me retornar para a
planície. Sob seus pés o sacrário aberto, como um generoso útero que não retém
o filho, mas que o dá à luz, sem dores de parto, sem angústia, sem lágrimas.
Generoso e sagrado útero que partilha seu fruto como um pão, com a humanidade
faminta.
O último peregrino da fila,
compungido, recebeu a partícula em atitude silenciosa e voltou ao seu lugar na
assembléia. Com a âmbula quase vazia, mas repleta de significado, dirigi-me ao
sacrário, aos pés da Senhora, e ali a depositei. Antes, porém, por alguns
instantes imperceptíveis, ainda olhei para a serena face. Pude ouvir em
seguida, do sacerdote ‘Ide em paz e o senhor vos acompanhe’.
O que entender de tudo isso?
Assuero Gomes
Médico e Escritor
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