A Igreja e a barca
Ereta na margem do rio, a igreja,
antiga, de madeira construída, guardava toda a história e a tradição do lugar,
que empobrecido pela monocultura, criou uma verdadeira zona de miséria. Os
pobres proliferavam ao redor da igreja, vivendo da pesca minguada do rio, que a
indústria poluiu, sem criar empregos, pois automatizada, dispensou a
mão-de-obra já barata, que de explorada passou a excluída.
Aconteceu que, por causa destes
desequilíbrios nada naturais, o rio além de corroer as margens, subia cada vez
mais. Invadiu os casebres e acabou com a pesca já mirrada. A população não
tinha como se salvar. Decidiram então construir uma barca na qual coubesse a
todos. A única madeira viável era a da igreja. O velho pároco bradando ameaças
do inferno foi contra. Era a casa de Deus, propriedade da Igreja, depositária
da tradição. Quem ousasse tocar numa só talisca daquela madeira sagrada seria
excomungado por dilapidação.
A água subia. Parecia até que um
segundo dilúvio de Noé estava para acontecer. As pessoas se reuniram e tomadas
de coragem, que as situações extremas encarregam de providenciar, amarraram o
padre à pouca distância e começaram a arrancar as tábuas da salvação. O pároco
chorava sentindo-se culpado por não defender com a vida sua igreja. O povo, a
bem da verdade, há muito tempo já não freqüentava mais assiduamente as
celebrações, pois a fome e as doenças apertando, com o desemprego, não tinham
como pensar no etéreo. A barriga vazia e o choro de crianças com fome, são
péssimas companhias para a meditação e o louvor.
Madeira por madeira, pregos
enferrujados de centenas de anos, muitos cupins sorrateiros. A estrutura
eclesial foi sendo desmontada pelo povo, que naquela hora precisava mais de uma
barca que de um edifício. O cura exortava os ribeirinhos a pararem com aquele
sacrilégio. A água subia. O povo começava a se organizar em comunidade na
iminência da catástrofe. Precisavam chegar à outra margem. As águas estavam
mais profundas e revoltas. A água começava a banhar os pés do pobre padre, que
a estas alturas já rezava o breviário decorada e piedosamente.
Em questão de horas, a igreja
estava praticamente toda desmontada e um esboço de embarcação estava surgindo,
como num milagre. Os pobres estavam transformando a igreja em barca. “Um dia,
muito antigamente, a Igreja já foi uma barca”, lembrou um ancião “e os padres
já foram pescadores”. O ancião era a memória do povo. Na construção da barca
todos trabalharam com afinco. A água subia galopante. Talvez não desse tempo. O
padre iniciou o terço. Estava aflito. A barca se completava com o esforço sobre-humano
de cada um.
As paredes, o forro, os bancos, o
altar, o confessionário, o genuflexório, tudo, tudo, foi transformado na barca.
A barca da salvação dos pobres. A barca que deveria chegar à outra margem,
transportando-os, em segurança, por sobre águas turbulentas e profundas. Com
água nos joelhos, estava quase pronta. As crianças forma colocadas a bordo, em primeiro. Desamarraram
o pároco, que vendo e sentido a água subindo por sobre sua batina, deu graças a
Deus pela barca e correu como pode para nela adentrar.
Estando pronta ao mesmo tempo em
que as águas revoltas do rio varriam os alicerces da antiga igreja e dos
casebres, todos se acomodaram e puderam iniciar mais esta travessia nas suas
vidas, e nunca, nunca mesmo, aquela igreja, agora transformada, salvou tanta
gente.
Assuero Gomes.
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